Perfeição
Nas pontas da idade
Na reportagem “Nas Pontas da idade” Ricardo Zeferino mostra-nos a força de uma relação entre pai e filhas. Começou a praticar ballet aos 35 anos para acompanhar Lara e Diana e perceber a paixão que estas têm pela dança. Ignorando o preconceito e a idade, esta história conta-nos como Ricardo continua a perseguir as suas paixões.
Catarina Dias, Inês Monteiro, Inês Paraíba, Juliana Pissarra, Teresa Oliveira, Teresa Pereira
Bastidores do espetáculo “Alice no País das Maravilhas”, no Centro Cultural no Entrocamento. Ricardo Zeferino nasceu em 1981 na Nazaré, mas considera-se alcobacense. É casado com Filipa Santos e pai de Lara (17 anos) e Diana (10 anos). Fotografia: Eliane Rodrigues Gomes
Numa era em que as tecnologias afastam gerações será que os filhos ainda querem seguir os passos dos seus pais? A história de Ricardo Zeferino, aluno da Escola Es-Passo Dança no Entroncamento, é a prova de que os pais podem fazer tudo para acompanhar os seus filhos e não se deixarem levar pela diferença de idades. Começou a praticar ballet aos 35 anos para acompanhar as filhas e perceber a paixão que estas detinham pela dança.
Quando Ricardo contou às filhas que tinha decidido entrar para o ballet, Lara, a filha mais velha, ficou surpreendida. Nem queria acreditar que a partir daquele momento a sua paixão seria partilhada com o pai. Apesar do impacto inicial, a sua filha mais nova, Diana, ficou muito feliz por poder passar mais tempo com o pai.
A partir desse momento a visão de Ricardo em relação ao ballet mudou. Passou de mero espetador da paixão das suas filhas a compartilhá-la com elas. Deixou de estar apenas sentado na plateia a aplaudir e começou a sentir a adrenalina de estar em palco com as suas filhas.
Contudo, o bichinho pelas artes sempre esteve presente na vida de Ricardo. Aos 17 anos entrou numa companhia de teatro em Tomar, onde atuou quase duas décadas. Foi nesta fase da sua vida que conheceu Filipa, sua mulher e mãe das suas filhas. Ricardo procurou sempre incluir a família nas suas paixões, fazendo com que Lara e Diana herdassem o gosto pelas artes: “As minhas filhas, tanto uma como outra, participaram em peças de teatro dentro da barriga da mãe”, ou seja, sempre tiveram uma relação muito forte. “No meu ponto de vista, a nossa relação é espetacular. Não sei se será exatamente o mesmo ponto de vista que elas têm”, riu-se o bailarino em tom de brincadeira. Ricardo esforça-se para ser o melhor pai possível, apesar de admitir que é bastante perfecionista com a educação delas, considerando-se um pai exigente e rigoroso.
Com a entrada no ballet começou a perceber melhor a paixão das filhas e a compreender os pliès, os chassés, as pirouettes e os runjumps utilizados por elas e que outrora não compreendia. Assim, as conversas paralelas das filhas passaram a ser um assunto partilhado por todos em casa.
A palavra ballet ganhou um novo significado para Ricardo. Passou a sentir um misto de emoções cada vez que calça as sapatilhas. A partilha desta paixão com as suas filhas torna este hobby ainda mais especial. Este caso pode ser uma tendência crescente dado que a criança tem um lugar privilegiado na hierarquia da família e é um elemento socializador em casa que, de certa forma, “educa” os próprios pais, segundo a socióloga Vanessa Cunha, Investigadora Auxiliar e Coordenadora do Observatório das Famílias e das Políticas de Família (OFAP).
Especial foi também a entrada de Lara para o ballet. Em pequena, Lara, como todas as crianças, tinha os seus ídolos. Para ela, a Barbie bailarina ocupava um lugar de destaque e, ao ver os filmes, tentava imitar os seus movimentos. Foi por isso que decidiu optar pelo ballet: “pelas vibrações que provoca na alma, a maneira como o corpo se movimenta ao dançar. Sempre gostei muito [das sensações] por isso ter sempre sentido o ballet no meu coração”.
Já para Ricardo as suas filhas são os seus ídolos, fazendo com que o ballet se tenha tornado numa das atividades mais importantes dos seus tempos livres, apesar de ter uma vida preenchida por diversos hobbies.
Ricardo tenta conjugar as diferentes paixões na sua vida. Uma delas é a moda e a costura, que consegue conciliar com o mundo do ballet. Este proporciona-lhe a oportunidade de fazer os figurinos para os espetáculos para todos os elementos da escola. Também o gosto pelo teatro ainda se mantém vivo nesta família, essencialmente através do Grupo de Teatro da “Meia Via”, o qual participa nas feiras medievais que ocorrem anualmente em várias localidades do distrito de Santarém, onde a mulher e as filhas o acompanham. Assim, Ricardo sente-se realizado com a vida que tem.
Fotografias: Ricardo Zeferino
As posturas rígidas, os movimentos repetitivos e os treinos intensivos fazem parte do dia-a-dia de um bailarino. Apesar de o ballet ser um hobby para Ricardo, ele revela que as aulas da professora “Xana”, como Susana Valério é tratada carinhosamente pelos alunos, são bastante rigorosas: “É um grau de exigência espetacular e às vezes saímos das aulas cansados e dói os musculozinhos todos. Mas é bom.” Contudo, para Ricardo, as aulas de ballet são muito mais do que apenas dançar, são um treino físico, uma forma de espairecer e de renovar as energias.
A sensação de estar realmente a dançar só é sentida pelo bailarino quando sente a emoção de estar em cima de um palco a dançar para uma plateia. E quando o obstáculo para os nossos sonhos somos nós mesmos? Para Lara, a sua filha mais velha, estar em cima do palco é como enfrentar um adversário: “Eu sinto-me muito nervosa. Vou para o palco, tremo toda e transpiro… pronto, é o habitual”.
Fotografia: Eliane Rodrigues Gomes
Ao contrário do pai, Lara já pensou em seguir o ballet como carreira profissional. Já participou em competições internacionais, tendo inclusive ganho uma medalha de ouro nos Performance Awards da Academia Americana de ballet. Atualmente, ser bailarina profissional já não é uma certeza na sua vida, no entanto não descarta essa hipótese. Estas dúvidas surgem acima de tudo devido ao seu pessimismo e à busca incessante pela perfeição: “Eu acho que estou a fazer tudo mal. Depois chego ao fim e o meu pai diz «Foi maravilhoso!» e eu penso «Não, não foi». Mas depois eu vejo os vídeos, as fotos e vejo que afinal estava tudo bem”. Lara tem consciência de que o pessimismo tem sido um obstáculo na concretização dos seus sonhos.
Fotografias: Cátia Sofia
Com o otimismo que lhe é característico, Ricardo tenta ajudar a sua filha a ultrapassar a procura do perfecionismo, pois reconhece as capacidades e o futuro promissor que Lara poderá ter no ballet. Em tom de brincadeira, compara as duas filhas e diz que não poderiam ser mais diferentes. Diana é mais parecida com a mãe fisicamente, mas puxou o otimismo do pai. Pelo contrário, Lara, apesar de ter parecenças físicas com o pai, é uma antítese da sua personalidade, acabando por ser um pouco mais pessimista como a mãe.
Fotografia: Ricardo Zeferino (à esquerda); A filha mais nova Diana no espetáculo “Alice no País das Maravilhas”, no Centro Cultural no Entrocamento. Fotografia: Cátia Sofia (à direita)
A Escola Es-Passo de Dança foi criada no ano 2000. Nasceu da concretização do sonho de Susana Valério em ter um espaço de ballet próprio no Entroncamento.
O convite para que Ricardo começasse a praticar ballet foi feito pela professora Susana Valério durante uma ida habitual ao salão onde este trabalha como cabeleireiro e a mulher como esteticista. A proposta surgiu numa altura em que “Xana” tinha acabado de abrir uma turma de ballet para adultos na sua escola de dança. No entanto, estava com receio de ter apenas dois alunos homens. Para ela é habitual não haver muitos alunos, dado que os homens são mais envergonhados e associam a dança a uma prática feminina. Para a socióloga Vanessa Cunha o caminho de igualdade entre mulheres e homens está trilhado, no entanto, no caso dos homens, ainda há muito trabalho a fazer. Hoje em dia, numa família é mais aceitável uma rapariga querer ser jogadora de futebol em vez de bailarina do que um homem querer ser bailarino ou cabeleireiro em vez de jogador de futebol. Deste modo, “Ricardo é um homem que desconstrói o olhar do estereótipo”.
A mulher de Ricardo, Filipa Zeferino, considerou que isso não seria um problema visto que o seu marido não dá importância a opiniões alheias. “Estou-me pouco ralando para a opinião dos outros, se eu gostar eu faço. Interessa-me o que eu penso e a opinião da minha família que mora comigo”. Vanessa Cunha considera que Ricardo é um sortudo, pois teve muito apoio por parte da família, considerando-os por isso “um casal moderno que desconstrói as masculinidades”.
Ricardo aceitou o convite pela necessidade de preencher o vazio que a saída do grupo de teatro lhe deixou. Apesar disso, o facto de as filhas praticarem ballet foi o motivo principal que o levou a abraçar esta nova aventura.
Ricardo também já sentiu julgamento por parte dos outros. O mais frequente são os comentários de alguns clientes do cabeleireiro ao verem algumas fotos publicadas no Facebook: “Agora estás a dançar ballet?”.
Ao julgamento e à pressão acresce ainda a perfeição e o que esta simboliza para o bailarino. Para Ricardo, não conseguir executar algum movimento sem erros e sem deslizes é normal. Apesar da sua frustração aquando das falhas, aceita-as, pois sabe que a perfeição é inalcançável: “Eu sou perfecionista, mas a perfeição não existe. Quero sempre mais”. Ricardo sugere que é impossível alcançar a perfeição, pois esta é uma oportunidade de estar em constante aprendizagem.
A professora de Ricardo partilha a mesma opinião: a perfeição não existe. “Há bailarinos fantásticos hoje em dia e sempre houve e às vezes eu vejo coisas que são perfeitas, que não falha ali nada, mas a perfeição não é alcançável em nada na vida”.
A pressão pela perfeição é sentida também dentro de casa, no papel de pai, quer seja imposta pelo próprio, pela mãe ou pela sogra, que de alguma forma o aconselham sobre a maneira como deve educar as suas filhas. No entanto, Ricardo não acredita na possibilidade de existir perfeição, tanto no ballet como na sua vida.
Ricardo admite ter vivido duas infâncias, ao contrário do que proporciona às suas filhas, uma mais rigorosa e outra mais liberal, visto que estava dividido entre duas famílias bastante distintas, tornando-o naquilo que ele é hoje. Num dia estava a corresponder à expectativa da sua avó de Alcobaça, que queria que ele se apresentasse como os outros rapazes – que cortasse o cabelo à “homenzinho”, que vestisse as roupas que eram tradicionais os meninos vestirem – enquanto no outro estava a experimentar todos os estilos alternativos quando ia para a casa da sua mãe em Tomar. Não considera que isso seja mau, pelo contrário, fê-lo gostar mais de si mesmo e das pessoas à sua volta.
Ricardo considera-se uma pessoa versátil e que se adapta a todo o tipo de atividades. Não era adepto dos corta-mato na escola, no entanto praticava ginástica artística e também chegou a fazer natação porque a mãe achava importante que ele se soubesse desenrascar em caso de aflição e, por isso, fez o mesmo com as filhas.
Apesar de a sua ideia inicial ter sido licenciar-se em educação para vir a ser professor de português-latim, Ricardo conciliou durante essa altura diversos hobbies: foi locutor de rádio, tendo tido um programa durante quase quatro anos, e também cabeleireiro aprendiz. Este último fez com que descobrisse um novo interesse e levou-o a concorrer ao curso de cabeleireiro. Depois de várias tentativas, conseguiu entrar para o tão ambicionado curso. Assim, tornou uma das suas paixões na sua profissão atual, abrindo o seu próprio salão.
Ricardo possibilita que as filhas tenham a mesma oportunidade de conjugar diversos hobbies nas suas vidas, correndo atrás dos seus sonhos. Independentemente do caminho que estas escolham para o seu futuro, o pai promete apoiá-las incondicionalmente. A socióloga Vanessa Cunha acredita que, no futuro, existirão “mais «Ricardos» por aí, a fazer coisas absolutamente inovadoras influenciados pela parentalidade”.