Sexo

Amar pelos dois, três ou mais

Na construção de relações amorosas, afetivas e sexuais, confrontamo-nos frequentemente com ideais predefinidos. Mas será que todas as estruturas relacionais se prendem ao mesmo guião?

Francisca Camilo, Joana Fernandes, Miguel Silva e Vasco Guedes

Vista de um prédio por fora, está de noite e as casas têm a luz ligada.

Em Portugal, apesar de já se verificar uma maior abertura, ainda parece existir algum constrangimento e receio quando o tema do sexo é abordado. Isto acaba por originar uma certa desinformação e até mesmo julgamento por parte das pessoas relativamente a determinados assuntos e realidades. Desde cedo que nos são transmitidos um conjunto de valores culturalmente aceites pela nossa comunidade, interferindo no modo como constituímos uma família.

A verdade é que estamos habituados a viver num contexto onde a monogamia é predominante. No entanto, existem diversas formas de nos relacionarmos. Apesar de se verificar uma diversidade de possibilidades, este artigo trata de duas estruturas relacionais distintas e com visões opostas: um casamento assente nos princípios católicos e uma relação não-monogâmica consensual.

Como amar?

As relações assentes nos princípios católicos respeitam o conceito da monogamia. Dentro de uma visão mais conservadora e tradicional que se rege pelo Catecismo da Igreja Católica, o homem e a mulher fazem o voto de castidade no namoro, ou seja, preservam a intimidade sexual para depois do casamento. Este preceito incentiva os seguidores de Jesus Cristo a permanecerem castos ao longo das suas vidas. “As pessoas casadas são chamadas a viver a castidade conjugal; as outras praticam a castidade na continência”, conforme expresso no livro Catecismo da Igreja Católica, que defende que o ato conjugal é dotado de uma dupla finalidade que não pode ser dissociada: a dimensão unitiva e a dimensão procriadora. É considerado imoral a utilização de métodos contracetivos e de outras práticas, tais como a masturbação, a pornografia, a fornicação e a luxúria, uma vez que servem apenas para satisfazer o prazer pessoal. 

Por outro lado, as relações poliamorosas não seguem um padrão específico. São a possibilidade de ter múltiplos relacionamentos afetivos e/ou sexuais ao mesmo tempo, com o consentimento de todos os parceiros da relação. É importante salientar que não se trata apenas de um desejo ou necessidade que é saciada e descartada posteriormente. Trata-se da própria liberdade de construir uma nova forma de amar e de, ao mesmo tempo, não ir contra as próprias vontades e perspetivas, pelo simples facto de não serem bem vistas pela sociedade.

“As não-monogamias consensuais não são opostas à monogamia. As não-monogamias consensuais são apenas formas diferentes de viver uma relação”, afirma Daniel dos Santos Cardoso, doutorado em Ciências da Comunicação e professor na Universidade Lusófona e na FCSH (Faculdade de Ciências Sociais e Humanas).

“Os princípios fundamentais de uma relação poliamorosa tem que ver muito com questões de consentimento informado, com questões de negociação constante, mas também com questões de autonomia”, explica o académico. Graças a esta transparência e necessidade de comunicação, as relações podem ser igualmente ou ainda mais duradouras do que as outras mais comuns.

Daniel Cardoso destaca o papel da comunicação, do consentimento e do estabelecimento de limites, como pilares importantes na criação e preservação de qualquer estrutura relacional. Para este, o sujeito de enunciação só pode, dentro de uma relação, estabelecer os seus próprios limites, algo que muitas vezes não acontece: “Frequentemente, quando uma pessoa diz que quer uma relação monogâmica, aquilo que está a dizer é que quer que a outra pessoa esteja só com ela e não o contrário. Portanto, é o único contexto em que nós definimos uma identidade nossa em função do comportamento de uma terceira pessoa”. 

O contexto social em que vivemos é fortemente centrado na monogamia e, descrito por Daniel Cardoso como “sociedade mono-normativa”. Este cenário gera uma tendência para “idealizar as estruturas relacionais, como sendo criadas sempre pelo mesmo guião”, declara o professor. A mono-normatividade, como paradigma sociocultural, acaba por desenvolver alguns obstáculos ao progresso das estruturas relacionais, onde sociedades mono-normativas tendem a cultivar uma atmosfera de discriminação em relação às não-monogamias consensuais. “Ainda existem muitas dificuldades em aceitar modelos relacionais que se afastam da norma monogâmica predominante”, afirma. O académico ressalta a importância da educação e da literacia, para uma sociedade mais instruída, capaz de fornecer ferramentas eficazes que permitam aos indivíduos refletir sobre a razão pela qual estão envolvidos numa determinada estrutura relacional e se é, de facto, isso que desejam.

Segundo Daniel Cardoso, o importante não é a estrutura relacional em que a pessoa está inserida, mas sim como é que chega a essa estrutura, isto é, quais foram os processos de autoconsciência e de autorreflexão que fizeram o indivíduo chegar a uma determinada dinâmica. “O importante é que, a cada momento, a pessoa reflita sobre o que é que faz sentido para ela, porque é que faz sentido e que haja de uma forma consentânea, com isso mesmo”.

Sexo e castidade

A Esperança e o Gonçalo são as nossas primeiras personagens. A Esperança, com 35 anos, trabalha como gestora de recursos humanos na área industrial. Apesar de ser espanhola, viveu toda a sua vida em Portugal, visto que os seus pais, missionários do Caminho Neocatecumenal, foram em missão para o Alentejo. De uma forma resumida, este itinerário é uma realidade da Igreja Católica que está presente nas paróquias e em pequenas comunidades, que “leva, gradualmente, os fiéis à intimidade com Jesus Cristo e transforma-os em sujeitos ativos na Igreja. É um instrumento para a iniciação cristã dos adultos que se preparam para receber o batismo”, segundo expresso no site oficial do Caminho Neocatecumenal. O Gonçalo tem 34 anos e é engenheiro mecânico. Vivem ambos em Oeiras, juntamente com os seus 6 filhos, e estão casados há quase uma década. São os dois cristãos, mas a fé nem sempre esteve presente nas suas vidas. “Os meus pais, dizem-se católicos, mas é aquele católico não praticante, que é uma coisa que para mim não faz muito sentido, quer dizer, é a mesma coisa de eu dizer que sou futebolista, mas não jogo à bola”, conta Gonçalo.

Apesar de serem cristãos, revelam que houve épocas de alguma dúvida e afastamento da fé. “Começou a adolescência e quis experimentar aquilo que o mundo oferece, isto é, as saídas, o álcool, o sexo. De certa forma, durante um tempo andei numa espécie de vida dupla, um pé na igreja e outro fora”, descreve Gonçalo. Esperança conta-nos que durante a fase da adolescência “não acreditava em Deus”, surgindo-lhe diversas dúvidas se isto não era realmente uma invenção, uma manipulação, uma lavagem cerebral”. No entanto, foi nessa fase que se deparou com um dos momentos mais adversos da sua vida. Com apenas 16 anos, engravidou da sua primeira filha. “Foi nesse encontro pessoal que eu vi Deus e que conheci Jesus”, revela Esperança.

Sendo um jovem casal cristão, era de esperar que pudesse haver certas dificuldades ou conversas em relação ao tema da castidade. No entanto, esse não foi o caso deste casal. “Não havia grande conversa a ter, até porque sabíamos que ambos éramos cristãos e o que queríamos. De certa forma, só começámos a namorar porque sabíamos que estávamos a lutar no mesmo sentido”, conta o marido de Esperança.

Esperança, antes de conhecer Gonçalo, teve uma relação amorosa com um rapaz que não pertencia à Igreja. Para ela, havia a necessidade de ter um namoro casto, no entanto, para ele não fazia qualquer sentido. “A partir do momento em que este rapaz me dizia constantemente que não, que não conseguia continuar a viver em castidade, eu acabei o relacionamento. Chorei, sofri muito, mas senti que havia algo maior para mim”, revela-nos Esperança. Os sentimentos que ela sentia eram muito fortes e intensos, mas Esperança percebeu que esta relação estava a pôr em causa a sua religião e aquilo em que acreditava. “Arrisquei nessa chamada de Deus e percebi que realmente essa relação não era para mim”, afirma.

Para Esperança e Gonçalo, a castidade é um “bem essencial” e é “fundamental para se guardar a grandeza do ser humano, uma vez que a sexualidade é um dom que Deus deu à humanidade”. A sexualidade, no seu contexto próprio, que é o matrimónio, é a representação do amor de Cristo pela Igreja. Desta forma, quando se entrega este dom fora deste selo, “estamos a aceitar que alguém nos use”, como se fôssemos um “objeto sexual”.

Gonçalo também nos chama a atenção para a ideia errada de que Igreja apenas “permite” o ato sexual com o único objetivo de ter filhos. “Isso é uma parvoíce”, refuta. O que a Igreja diz é que o sexo tem duas dimensões na vida conjugal: a unitiva, que caracteriza a união entre o casal, e a procriativa, pois de um ato sexual pode ou não se gerar uma vida. “O que é importante é que não se elimine nenhuma destas dimensões, estas têm de estar sempre relacionadas”, explica. É então esta a razão pela qual a Igreja diz que não se deve usar métodos contracetivos, visto que assim estar-se-ia a eliminar a possibilidade de procriar. 

Na perspetiva deste casal, as relações não monogâmicas “não fazem qualquer sentido”. “Esse tipo de relações não te permite que sejas amada enquanto pessoa. És apenas um objeto”, afirma Gonçalo. Esperança, concordando com a opinião do seu marido, acrescenta ainda que acha que “cada vez há uma maior banalização do nosso corpo e do corpo do outro”, e que isso se deve em grande parte à comunicação social e à pornografia.

Amar fora da caixa

Foi já com três anos de trabalho na área da psicologia, onde se havia licenciado na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) de Belo Horizonte, que Marcela Aroeira se casou. Corria o ano de 2014 e estava a dar mais um passo no trajeto ideal do seu sucesso pessoal – formação académica concluída, situação profissional estabilizada e a união consumada com a pessoa que parecia ser a tal. Até que, dois anos depois, enquanto assistia a um documentário, uma palavra ecoou mais alto que as outras: poliamor. “Comecei a questionar a monogamia, a pesquisar mais sobre este tema, e percebi que aquilo já não fazia mais sentido para mim”, conta-nos Marcela. Foi assim que se assumiu como não-monogâmica 

Marcela chegou a Portugal, com o objetivo de tirar o mestrado em Psicologia Clínica. Foi precisamente ao elaborar a sua tese, centrada na questão do empoderamento feminino em relações não-monogâmicas, que reparou na falta de informação sobre o tema. Surgiu, assim, o projeto Amores Plurais. “Hoje atendo, tanto no consultório em Lisboa, como online, várias pessoas não-monogâmicas que querem começar ou já começaram essa jornada”, afirma.

A ideia de não passar uma vida com uma pessoa ao nosso lado talvez ainda soe estranha a muitos, mas não a Marcela. “A monogamia desfavorece a autonomia sobre o nosso corpo e os nossos desejos”, defende.

Mas afinal, como se gerem várias relações ao mesmo tempo? Será que uma pessoa não-monogâmica o faz apenas para poder ter mais do que um parceiro em simultâneo? As respostas para estas perguntas são dadas por Marcela. Na verdade, conforme nos diz, a não-monogamia é também um posicionamento e uma forma de encarar a nossa vida pessoal, sem ser necessária a existência de diversas relações paralelas. 

Existe ainda algum preconceito e desconfiança em relação à capacidade de educar uma criança neste registo. Marcela, tendo um filho, é capaz de desmistificar esta questão: “Quando pensamos em fazer as nossas relações em rede podemos viver de uma forma mais colaborativa, e a parentalidade em consequência torna-se mais leve”.

A discriminação é algo que não a assusta, muito pelo facto de falar abertamente sobre o tema há algum tempo. O seu grande objetivo passa por divulgar cada vez mais este conceito a quem ainda não o conhece. “Hoje em dia, uma em cada dez pessoas em Portugal sabe da existência da não-monogamia, e isso é um grande passo”, conclui Marcela.

Ao reconsiderar as normas sociais que moldam as relações humanas, destaca-se a necessidade de promover uma compreensão mais ampla e inclusiva das diversas formas de nos relacionarmos. Existe a urgência de uma sociedade que não apenas reconheça, mas também respeite a multiplicidade de escolhas relacionais. É essencial que haja uma maior preocupação e investimento na educação relacionada com o tema, construindo sociedades mais conscientes e capazes de aceitar o outro tal como é. Isto não só poderia reduzir estigmas e preconceitos, como também contribuir para o desenvolvimento de mentes mais inclusivas e abertas a todos os tipos de relacionamentos. 

O fundamental é que haja uma reflexão constante sobre o que faz sentido em termos relacionais para cada um de nós.