Sexo
Sexualidade não é apenas sexo
E se a sexualidade for mais do que aquilo que nós pensamos?
João Ricardo, Madalena Pedro e Maria Pinto
Madalena Pedro (ilustração)
A partir de uma conversa informal, chegámos à conclusão de que tínhamos perspetivas completamente diferentes sobre a sexualidade e isso despertou-nos a curiosidade para perceber o que engloba este conceito tão vasto. Contudo, havia um ponto de união: a sensação de que as questões de orientação sexual e de identidade de género têm sido alvo de holofotes, enquanto a sexualidade em si e o seu estudo tem estado mais na sombra.
“Sexualidade não é apenas sexo” é um trabalho multimédia que reflete a forma como os portugueses veem e vivem a sexualidade atualmente. Numa perspetiva informativa, vamos tentar explicar a sexualidade, explorar tabus sexuais, entender o papel e a importância da educação sexual e perceber de que forma a visão que a sociedade portuguesa tinha da sexualidade, durante o período do Estado Novo, influenciou a visão que hoje existe.
Sexualidade: um conceito vasto
Associar sexualidade a sexo é o mais comum de se fazer, mas dizer que a sexualidade está apenas relacionada com o sexo é uma ideia redutora e falaciosa. O sexo relaciona-se com a componente física da sexualidade, mas, não é a única componente que compõe este conceito tão vasto.
Durante o nosso processo de desenvolvimento, experienciamos situações indispensáveis ao crescimento pessoal, à autonomia e ao desenvolvimento da individualidade, personalidade e sexualidade, estabelecendo-se assim uma relação direta entre sexualidade e cidadania.
A sexualidade engloba outros tantos conceitos, como a amizade, o afeto, o prazer, a intimidade, a confiança, a descoberta, etc. Nós exteriorizamos a nossa sexualidade através dos nossos comportamentos, sentimentos e atitudes. A sexualidade é um atributo de qualquer ser humano, é o resultado da união entre componentes biológicas, culturais, educativas e sociais, é o que distingue a forma como pensamos e agimos na sociedade. Uma vivência saudável da sexualidade e uma educação sexual adequada permitem que estabeleçamos uma melhor relação com aqueles que nos rodeiam, mas igualmente, e fundamentalmente, connosco próprios.
A herança do passado
Não podemos compreender a forma como os portugueses veem e vivem a sexualidade, atualmente, sem antes recorrermos ao passado. Como exploraremos adiante, a família é uma instituição social com grande impacto na perceção da sexualidade e muitos jovens estão a ser educados mediante valores que são passados de geração em geração.
No século XX, a sexualidade, sobretudo a feminina, era conotada quase como algo impuro e impróprio de se falar. Essa realidade ficou mais vincada na sociedade portuguesa com a implantação do regime ditatorial e conservador de António de Oliveira Salazar. A sexualidade feminina representava uma ameaça à ordem e ao bem-estar social e, portanto, estava restrita à relação legítima do casamento, mantendo-se a virgindade da mulher até lá. Esperava-se que a mulher fosse passiva, submissa, confinada às tarefas domésticas e à maternidade e que respeitasse o marido autoritário, experiente e, muitas vezes, viril. Por outro lado, o homem era o chefe máximo da família, que representava autoridade, superioridade relativamente à mulher e que seria o sustento e o suporte da família.
A Revolução de 1974 simbolizou a abertura para o mundo da liberdade, educação, saúde e prazer sexual dos portugueses, o que, consequentemente, desencadeou fenómenos que promoviam a emancipação feminina, novas reivindicações e debates relativos à vida privada e à sexualidade. Com a Constituição de 1976, houve também um maior reconhecimento da igualdade de género, o que levou a que a figura autoritária e superior masculina absoluta fosse posta em causa e que uma nova ordem de relações sem compromisso se multiplicasse. Em 1983, o primeiro caso de VIH/SIDA foi diagnosticado, em Portugal. Desencadeou a necessidade de circulação de informação sobre sexualidade e doenças sexualmente transmissíveis no país, o que se acentuou a partir dos anos 90.
Educar para um melhor cidadão criar
A educação sexual é o ensino de temáticas ligadas à sexualidade humana, quer num contexto escolar, familiar e, até mesmo, num contexto social.
A Constituição da República Portuguesa contempla a Lei n.º 60/2009 de 6 de Agosto, lei essa que estabelece o regime de aplicação da educação sexual em meio escolar. Foi aprovada a 4 de Junho de 2009 e promulgada e referendada a 23 de Julho de 2009. A lei estabelece a obrigatoriedade da implementação da educação sexual nos ensinos básico e secundário em Portugal. Os objetivos incluem a promoção da valorização da sexualidade e afetividade, o desenvolvimento de competências para escolhas informadas, a redução de comportamentos de risco e a consciencialização sobre a proteção contra exploração e abusos sexuais. A lei especifica a integração da educação sexual nas áreas curriculares e não curriculares no ensino básico e secundário.
Para além disso, a lei destaca a necessidade de desenvolver projetos educativos e de educação sexual ao nível de turma, a designação de coordenadores e equipas interdisciplinares nas escolas, parcerias com organizações não governamentais especializadas e a criação de gabinetes de informação e apoio aos alunos. A avaliação é feita pelo Governo e posteriormente enviada à Assembleia da República, por meio de um relatório global de avaliação sobre a aplicação da educação sexual nas escolas, baseado nos relatórios periódicos, após dois anos letivos seguintes à entrada em vigor da lei.
Contudo, em geral, os professores não têm formação específica, acesso e vontade de se informar suficientes para desenvolver projetos relacionados com a sexualidade, levando a que muitas crianças e jovens nunca tenham tido aulas de educação sexual e apenas possam ter tido contacto com estas temáticas através de palestras, na escola, ou através da internet, em casa. Informações procuradas sem qualquer tipo de indicação ajudam assim à propagação da desinformação e à consequente criação de mitos.
Existe um grande medo, por parte dos pais, em abordar igualmente estas questões, pois a maioria acredita que quanta mais informação os seus filhos obtiverem, mais cedo irão iniciar a sua vida sexual. Pelo contrário, vários psicólogos e sexólogos, como Vânia Beliz, sexóloga clínica, afirmam que jovens corretamente informados iniciam a sua vida sexual mais tardiamente, do que aqueles que nunca tiveram contacto com a educação sexual. Vânia Beliz acredita também que “este medo, por parte dos pais, surge da palavra “sexual”, pois as pessoas acreditam que os seus filhos só irão falar sobre sexo nas aulas de educação sexual, quando, na verdade, também se fala sobre sentimentos, emoções, cidadania, liberdade e questões de identidade”.
A educação sexual permite quebrar tabus e desmistificar a sexualidade, enquanto cria cidadãos mais instruídos e aptos a tomar melhores decisões relativamente à sua vida sexual.
Proibições e imaginações
Tanto a sexualidade, como o estudo da mesma, constituem-se como dois grandes tabus, mas não são os únicos relacionados à temática. Os tabus sexuais surgem, originalmente, ligados à religião, numa tentativa de limitar o sexo. A herança judaico-cristã que nos foi deixada e a nossa ligação com ela, não tão forte atualmente, continua a ter um grande impacto naquilo que é considerado tabu. O incesto, por exemplo, é um tabu e, simultaneamente, um mito. Este foi criado para evitar o envolvimento de pessoas consanguíneas (tabu), porque poderia levar à deterioração da espécie (mito). Na realidade, o que poderá acontecer é que existe apenas um maior risco de o bebé nascer com alguma patologia associada, em comparação com bebés que são fruto de um envolvimento por afinidade. Duas práticas sexuais que são também consideradas tabus, por exemplo, são a masturbação e o sexo anal, pois são vistas como um desvio da sexualidade dita natural e não têm fins reprodutivos. A homossexualidade é igualmente um tabu, pelos mesmos motivos.
A família é também uma instituição social com grande impacto na criação de tabus sexuais, na medida em que impõe proibições e normas, associadas à sexualidade, através dos discursos, gestos e expressões utilizados para falar da temática. As primeiras exteriorizações da sexualidade manifestam-se na adolescência e muitas das vezes as famílias menosprezam-nas. Este desprezo tem um grande impacto na autonomia sexual de cada um, porque possuímos uma grande dependência social da família, devido ao sistema educativo em que estamos inseridos, à precariedade no emprego e às inseguranças que são fruto do desconhecimento. Para além dos adolescentes, os idosos também são muito desprezados, uma vez que a sua sexualidade é vista como um tabu. São muitas das vezes dados fármacos a idosos para que estes possam controlar os seus desejos sexuais, assim como muitas das vezes estes são infantilizados, por parte dos filhos.
Um dos conceitos que está presente na sexualidade é a virgindade, que é nada mais, nada menos, do que um mito.
A virgindade é um conceito que pode ter várias interpretações. Por um lado, ser virgem pode significar nunca ter tido qualquer tipo de relação sexual. Por outro lado, ser virgem pode significar nunca ter tido uma relação em que existisse penetração, que potencia o rompimento do hímen, uma das grandes marcas associada à perda da virgindade. Contudo, apenas as mulheres possuem o hímen, logo a virgindade é sempre um conceito que as pode estigmatizar. Todavia, algumas mulheres nem sequer nascem com o hímen e há outras que não o chegam a romper. Relacionado ao hímen, existe ainda o mito de que todas as mulheres quando o rompem sangram, o que não é de todo verdade. Os profissionais da área optam por se referir à virgindade de uma forma mais abrangente – início da vida sexual – e que não está envolta em mitos.
Na tabela, podemos observar tantos outros mitos sexuais que ainda existem e que continuam a ser passados de geração em geração:
Os novos tempos
Apesar de a sexualidade na atualidade ser abordada com maior detalhe e em diferentes vertentes noutros artigos desta revista, deixamos a nota de que em Portugal, a aceitação de questões de diversidade sexual tem sido cada vez maior, embora a sexualidade em si continue a ser um tema ainda muito desconhecido. Nas últimas décadas, outras formas de relacionamento, consideradas não tão tradicionais, têm sido cada vez melhor acolhidas. É o caso das relações poligâmicas, apesar de a poligamia já ser bastante comum em algumas culturas, sociedades e comunidades. Esta prática está muito centrada no homem, ainda que existam também mulheres a praticar. Ao mesmo tempo que assistimos a um maior avanço em termos de liberdade sexual, esta liberdade é também relativa. É essencial ter em atenção o ressurgimento de ideais conservadores, que dificultam esta progressão, podendo até especular-se um possível retrocesso desta liberdade fundamental para todos nós.
O avanço da tecnologia é também um grande desafio à visão e vivência da sexualidade. Assistimos ao surgimento da inteligência artificial e de plataformas digitais para fins sexuais, que possibilitam, entre tantas outras atividades, o cybersexo. No entanto, estas plataformas podem causar uma sensação de perda de noção da realidade, pois criam expectativas sobre as relações sexuais que não correspondem à realidade. Ainda que facilitem o acesso a parceiros e experiências sexuais, potenciam uma falsa sensação de facilidade e criam efeitos psicológicos bastante negativos e prejudiciais para a saúde, pois geram grandes níveis de ansiedade e medo, como o da rejeição.
No contexto tecnológico atual, surge o conceito de intimidade artificial, que foi apresentado pela primeira vez pela psicoterapeuta Esther Perel, na edição de 2023 do festival South by Southwest, realizado em Austin, Texas, nos EUA. As plataformas digitais e a inteligência artificial fazem com que a intimidade e as conexões emocionais sejam vividas à distância, por meio de entidades artificiais. A permanente conexão com a artificialidade e desconexão com a realidade leva a que as pessoas mascarem sentimentos de solidão, uma vez que estão a viver uma simulação do real.
Deixamos assim de assistir a uma sexualidade tal como a conhecíamos até agora: as primeiras interações sexuais são cada vez mais em ambiente virtual; a diversidade sexual é cada vez maior e mais acolhida, mas, paradoxalmente, os ideais conservadores ressurgem com maior intensidade.
A forma como os portugueses veem e vivem a sua sexualidade tem sofrido mutações ao longo do tempo, mas continua a apresentar problemas estruturais que só serão resolvidos com uma maior aposta na educação sexual, tanto pelos cidadãos comuns, como pelos órgãos de soberania nacional.
O contributo de quem sabe
Vânia Beliz é licenciada em Psicologia Clínica e é mestre em Sexologia, tendo a sua tese final de mestrado sido no âmbito da sexualidade feminina. Durante 3 anos, teve uma rubrica quinzenal no programa Curto Circuito, da SIC Radical. Em 2011, lançou o seu primeiro livro, intitulado “Ponto Quê?”, sobre sexualidade feminina. Já se envolveu em projetos tanto em Portugal como nos PALOP. Neste momento, encontra-se a acabar o seu doutoramento em Educação, mais concretamente educação para a sexualidade infantil, devido ao facto de acreditar que estas temáticas devem ser abordadas desde cedo. É através do contributo de quem sabe e estuda a sexualidade a fundo que conseguimos ter uma perspetiva mais ampla da forma como os portugueses veem e vivem a sexualidade.
Entrevista a Vânia Beliz (locução por Madalena Pedro)
Crónicas
Se me tivessem proposto um trabalho com este tema há cinco anos, garanto que era incapaz de o fazer. A sexualidade sempre foi um tabu para mim, tanto que me recusava a dizer a palavra “sexo”. Com o passar do tempo, fui desconstruindo esse tabu e explorando a área da sexualidade. Atualmente, abordo o tema com facilidade e posso dizer que é um tabu superado.
Por Madalena Pedro
Falar sobre a sexualidade nunca foi um problema para mim. Do meu seio familiar, ninguém me explicou o que engloba a sexualidade e, como tal, grande parte daquilo que sei sobre o tema deve-se à minha procura por informação na Internet e à minha relação amorosa. Pode-se dizer que, no geral, são as experiências de vida.
Por João Ricardo
Quando somos crianças, temos sempre muitas perguntas a fazer e a curiosidade mora dentro de nós. Desde a minha infância que tenho confiança com a minha mãe para falar sobre sexualidade e assuntos da minha intimidade. Basta começar com uma conversa sincera, porque a conversa é a chave.
Por Maria Pinto
Glossário
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