CIDADANIA
Chove, mas não há vento – Sem-abrigo e cidadania
“Chove, mas não há vento. Ou então, chove e há vento: mas sabes que esta noite é a tua vez de ter o suplemento de sopa, e então também hoje encontras força para chegar até à noite”, escreveu Primo Levi na sua obra Se Isto é um Homem. Quem se encontra em situação de sem-abrigo, também relata que para chegar à noite é preciso encontrar alento nas coisas mais ínfimas e elementares. Para resolver o problema não só é preciso olhar nos olhos de quem, tantas vezes, desviamos o olhar, mas também conhecer quem, que por obras valerosas, se vai da lei da rua libertando.
Carolina Alves, Filipa Maria Gala, Rodrigo Caseiro Miranda
Homem com saco de alimentos e casaco fornecidos pelo Centro de Apoio aos Sem-Abrigo (CASA)
“Todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar.”
(Constituição da República Portuguesa, 2021, art.65)
O tema da cidadania apresenta-nos um curioso paradoxo: é tão considerado quanto menosprezado e mesmo tendo a sua importância amplamente reconhecida, é esquecido e secundarizado. E é precisamente nessa secundarização que os direitos e liberdades fundamentais, principalmente das pessoas mais frágeis, vão ficando para trás na lista das prioridades políticas. Em Portugal, é o sentimento de abandono aquilo que mais preocupa a população sem-abrigo e, principalmente, as instituições que se destinam a cuidar de pessoas marginalizadas. Falar acerca de pessoas sem-abrigo implica despirmo-nos de preconceitos. Contudo, o conceito é mais abstrato e impreciso. Segundo Rita Rocha, psicóloga e diretora do Centro da Tomada – Comunidade Vida e Paz, instituição que procura ajudar na “reabilitação, reinserção e dignificação da pessoa humana”, a definição não se resume apenas à falta de habitação digna, mas também à carência de ligações interpessoais, necessidades básicas e cuidados de saúde primários.
O conhecimento comum relativamente a estes casos de pobreza baseia-se, normalmente, menos no conhecimento dos factos e mais em opiniões superficiais e pouco fundamentadas. Ao contactar com pessoas em situação de sem-abrigo, os cidadãos atribuem a condição ao consumo da droga e do álcool, e ignoram os problemas de saúde mental como causas subjacentes. Deste modo, pensar os sem-abrigo não é uma conta simples, mas antes uma equação complexa e com múltiplos fatores envolvidos.
Explorar os fatores
A situação dos sem-abrigo em Portugal tem vindo a agravar-se nos últimos anos. De acordo com os dados mais recentes, cerca de 13 mil pessoas vivem em situação de sem-abrigo. A predominância está no sexo masculino, com especial destaque para o crescimento da presença de jovens na rua, o que indica que a situação não afeta apenas os mais velhos, como ainda se possa pensar. Este fenómeno sublinha uma verdade muitas vezes ignorada: a pobreza e a exclusão social afetam todas as idades. Vários são os fatores que levam à rua, tais como a falta de uma rede de apoio familiar. Muitos dos sem-abrigo enfrentam ruturas familiares profundas. Noutros casos, a existência de adições ao álcool e às drogas pode ser um motivo de marginalização. O consumo de qualquer substância psicoativa como cocaína, heroína e haxixe pode desencadear sintomas de doenças psiquiátricas escondidas ou adormecidas. As patologias mais comuns são a depressão e a esquizofrenia. A questão, porém, levanta uma dúvida importante: serão as dependências a causa ou a consequência da situação de sem-abrigo e do adoecimento mental? Para muitas pessoas, o uso de substâncias é uma forma de lidar com a dor psicológica. No entanto, não é apenas o consumo de estupefacientes que constitui um diagnóstico de adição. O vício no jogo, no sexo e nas compras são também formas de dependência que, embora menos visíveis, têm um impacto profundo na vida das pessoas.
A par destes fatores, há ainda o aumento da imigração e do custo de vida, como faz questão de referir Rita Rocha. Por um lado, a imigração tem contribuído para o aumento da população sem-abrigo, já que os imigrantes ao chegarem a Portugal encontram um mercado de habitação saturado. As promessas para quem busca uma vida melhor transformam-se em desilusão, procurando assim refúgios no álcool especialmente. Já o aumento do custo de vida tem vindo a amplificar a precariedade. As rendas altas e a escassez de habitação minimamente acessível no mercado imobiliário dificultam o sustento de uma residência. Mesmo aqueles que têm um trabalho e uma vida relativamente estável, não conseguem cobrir os custos. De acordo com Rita Rocha, a falta de políticas públicas inclusivas, a ausência de uma rede de apoios e o peso do estigma associado ao sem-abrigo tornam muito difícil para estas pessoas voltarem a reintegrar-se com dignidade na sociedade. Perante o cenário observado, refutamos os julgamentos mais comuns como, por exemplo, assumir que as pessoas escolhem viver na rua.
Rita Rocha sublinha que “o governo não faz o suficiente” e as soluções não podem ser superficiais ou pontuais. O problema de pessoas nesta condição não pode ser resolvido apenas com medidas imediatas, como a distribuição de refeições ou o acolhimento em albergues. Ela aponta que é necessário um trabalho mais integrado, que inclua políticas públicas focadas na reinserção social destes indivíduos com programas de qualificação profissional e social.

Nesta imagem, Rúben apresenta-nos o jardim do Arco do Cego, no Saldanha, em Lisboa. É um local importante na vida de Rúben por ser o sítio onde ele convivia com os seus amigos.

António e o mar são inseparáveis. Neste desenho, “Tarzan”, como é conhecido por todos, faz representar o barco onde tantas madrugadas embarcou para ir pescar no mar da Ericeira.
O sorriso é o troco
Viver na rua é sinónimo de permanecer alerta e de estar sempre preparado para qualquer tipo de mudança que deva ser feita. Os números de sem-abrigo aumentam com os anos e as soluções para mitigar o contínuo crescimento parecem escassas. Luís Martelo, que já foi sem-abrigo durante 3 anos e é agora considerado um dos melhores trompetistas do mundo, sublinha que “a questão dos sem-abrigo tem de ser resolvida desde dentro da sociedade.” Para além da intervenção do Estado é necessário que a população se envolva, sejam os cidadãos, sejam as instituições e associações.
Através dos olhos de Rita Rocha, conhece-se a Comunidade Vida e Paz (CVP) e o trabalho diário que é realizado com os utentes. A CVP é uma instituição que aposta no acompanhamento pessoal e que procura que todos os que por lá passam assegurem uma vida mais estável do que a que tinham antes de entrarem. É uma casa somente para utentes homens e, neste momento, alberga 80 residentes que realizam tratamentos de diversos tipos que duram entre 12 a 18 meses. (https://www.cvidaepaz.pt/sobre/#sobre_comunidade)
Diversificados são também os passados e as histórias das pessoas que recebem na instituição: jovens que em vez de irem presos devem cumprir o tratamento, homens que são “empurrados pela família que já não os apoia mais” até ficarem melhores, e rapazes com todos os tipos de adições. Os tratamentos procuram dar uma resposta eficaz a cada problema, sem nunca descurar o aspeto de cuidar da individualidade de cada um. Rita Rocha explica que em muitas sessões os residentes tentam, com a ajuda de um psicólogo mediador, chegar ao fundo das razões que os levaram para a rua. ‘O que é que os levou a começar a consumir?’, ‘que características da personalidade da pessoa torna mais fácil recaírem?’, são exemplos de perguntas que são feitas nestas terapias de grupo de modo a que todos possam partilhar e assim, ajudar os outros com a sua experiência.
Rita Rocha destaca a importância de se criar uma rotina para os homens que vivem na Comunidade, e esclarece que os utentes “não estão aqui [na Comunidade] a passar o tempo, é um tratamento intensivo”. O ambiente de amizade e de apoio entre eles é também algo que se tenta construir dentro da CVP, não só através dos grupos de tratamento, mas também ao fazerem atividades criativas que os aproxima e faz com que se ajudem uns aos outros. A Diretora do Centro da Tomada da Comunidade Vida e Paz enfatiza este espírito de colaboração ao afirmar que: “Muitas vezes os mais velhos acolhem os mais novos de uma boa maneira”. Mas nem todas as relações são fáceis e tal como numa família há conflitos e discussões, na Comunidade Vida e Paz as desavenças também existem. Os conflitos são em grande parte originados no interior da Comunidade, portanto é algo que se deseja resolver, mais uma vez, nos tratamentos terapêuticos de grupo com os psicólogos. Os mais velhos que sabem acolher os recém-chegados, podem também ser, segundo a psicóloga Rita Rocha, “os mais exigentes para com os mais novos no cumprimento do tratamento”; quando alguma coisa não é 100% bem feita ou se existe algum descuido, os veteranos podem ficar mais agressivos.
No que se refere à saúde mental, a Comunidade Vida e Paz está muito atenta aos problemas psicológicos e psiquiátricos dos seus utentes. Na instituição existem alguns residentes que têm duplos diagnósticos, ou seja, que têm por exemplo esquizofrenia e uma adição associada. Em pessoas com duplo diagnóstico “a adição não é o principal, é quase uma coisa acessória, a doença que têm é que é”, sublinha Rita Rocha. Para além de a ajuda individual estar sempre disponível em cada altura do dia, e “às vezes os residentes baterem à porta constantemente”, existem tratamentos mais específicos para pessoas com doenças psiquiátricas.
A expressão pela arte foi uma maneira que a Comunidade encontrou de ajudar, de uma maneira diferente, os pacientes com diagnósticos psíquicos. O Ateliê Criativo é uma das técnicas usadas e permite que os homens que nele participam possam demonstrar o que sentem. O teatro, a pintura e até a escrita possibilitam que os residentes transmitam aspetos interiores de uma forma mais fácil para eles.
Apesar de todos os meios disponibilizados, os casos de doença mental são dos mais difíceis de tratar e de integrar na Comunidade. Rita Rocha confessa que os utentes psiquiátricos nem sempre conseguem ter uma vida completamente normal depois de terem concluído o tratamento, mas garante que “o objetivo na Comunidade é acompanhar estas pessoas com equipas de multidisciplinares, em que possa fazer uma reinserção na sociedade, em que possam conviver com pessoas que não tenham estes problemas.”
Outro aspeto importante na saúde mental que é trabalhado na Instituição é o luto. Rita Rocha, contou a história de um senhor que foi parar à Comunidade depois do falecimento do filho; não conseguiu fazer o luto, e começou a ter problemas com a bebida, o que, consequentemente, fez com que a mulher e os restantes filhos o abandonassem. Ao revelar a razão que levou o residente a ir parar à rua, a psicóloga quis dar ênfase à importância da saúde mental em pessoas sem casa. Neste caso foi um antecedente da condição, mas muitas vezes pode ser algo que se desenvolve com a situação. Para trabalhar o luto, além de haver ajuda psicológica, é incutida a importância da partilha no utente, pois ao partilhar faz com que possa haver um feedback, uma troca de experiências por parte dos outros que estão a ouvir.
São múltiplas as respostas que a Comunidade Vida e Paz procura dar aos utentes, mesmo depois de saírem da instituição, mesmo que não frequentem a “casa principal”, os pacientes podem ficar alojados num dos albergues ou num dos apartamentos partilhados. Mas nem todos estão dispostos a ser ajudados e acompanhados, muitos mostram-se revoltados interiormente e rejeitam a tentativa de remediar a situação. Rita Rocha explica, mais uma vez, que “vai havendo uma seleção natural: os que querem mesmo ficar mantêm-se, os que não estão por vontade própria é mais difícil que se mantenham a fazer o tratamento”. Muitos dos que não permanecem até ao fim do tratamento também não conseguem ser ajudados mesmo não estando na residência; alguns tornam-se agressivos o que impossibilita a intervenção especializada. Relativamente aos casos de pessoas agressivas, Rita Rocha relata: “Existe um limite em que a Comunidade não pode “esticar a corda” da ajuda, chega a um limite que é quando se chega à parte agressiva: “não podemos fazer milagres”.
O Centro de Apoio ao Sem Abrigo (CASA) atua frequentemente no “terreno” e procura o contacto direto com pessoas que vivem na rua. A principal ajuda que fornecem é a distribuição de comida pelas ruas e a distribuição de cabazes a famílias carenciadas. A associação conta delegações em diversos pontos do país, onde acontece toda a gestão existente por detrás da ação. Alguns dos locais onde a CASA está presente são: Lisboa, Porto, Coimbra, Madeira, Cascais, entre outros.
O Centro funciona com muita participação de voluntários que colaboram nas rotas de distribuição ou no apoio que é dado a famílias carenciadas, que têm casa, mas que precisam de contribuição externa na parte de obter comida. Na CASA, os trabalhadores e voluntários procuram não só dar uma ajuda em termos de bens essenciais, mas também procuram acompanhar essas pessoas ao falar com elas e mostrarem que há alguém que se preocupa com a sua condição. Durante todo o ano a associação faz a distribuição, e no início de cada mês as famílias têm de se inscrever para conseguirem receber o cabaz.
Os pontos das rotas de comida são estrategicamente bem escolhidos; sítios onde há grandes aglomerados de pessoas e em que os sem-abrigo, muitas vezes, passam despercebidos. As zonas por onde a CASA distribui os sacos de comida são a do Cais do Sodré e a do Saldanha e cada uma delas engloba locais mais específicos, como por exemplo junto à PSP de Alcântara. As viagens noturnas não resolvem todos os problemas das pessoas que se encontram em situações de rua ou de carência extrema, mas possibilita dar algum conforto e esperança.
A montagem dos cabazes para as famílias e dos sacos de comida para os sem-abrigo acontece na sede do Centro. No estabelecimento, voluntários e trabalhadores do CASA juntam-se na construção da melhoria da qualidade de vida das pessoas. O edifício conta com uma cozinha, onde se fazem as refeições tanto para os cabazes como para as rotas de distribuição. Os supermercados colaboram também com esta iniciativa e, por vezes, fornecem alguns alimentos para serem incluídos nos leques de comidas. O empenho de todos envolvidos neste projeto reflete a preocupação acerca deste tema que tem vindo a aumentar juntamente com o número de pessoas sem-abrigo e carenciadas.


Na altura do Natal, é quando as ajudas começam a ser mais, tanto de voluntários como de comida para fornecer. A associação aproveita esta altura do ano para fazer o bem de forma diferente: organizar a festa de Natal na sua sede para as famílias. Desde miúdos a graúdos, todos participam desta celebração. O convívio natalício é a altura perfeita para estar presente para as pessoas e para perceber melhor as suas necessidades.
Apesar do grande foco do Centro de Ajuda ao Sem-Abrigo ser a ação diária em gestos de ajuda simples, existe também um departamento que trabalha para tentar tirar as pessoas da rua. Nuno Jardim, Diretor do CASA e responsável pelo departamento de realojamento, está determinado em conseguir que todas as pessoas que ajudam e com quem contactam consigam arranjar uma habitação própria e digna.
Aqui pode ver na íntegra a entrevista a Luís Martelo, considerado um dos melhores trompetistas do mundo. Ex-sem-abrigo durante tês anos em Vila Nova de Milfontes, conta a sua história de superação e a forma como consciencializa as pessoas para a causa.
Entrevista Luís Martelo

Luís Martelo: A história de Luís Martelo será o testemunho de superação da reportagem. Por um lado, esta entrevista concluirá o nosso trabalho (estará no fim), mas, por outro, estará presente em todos os momentos do trabalho da seguinte forma: sempre que um determinado tema é abordado ao longo do trabalho, ao lado aparecerá um ícone (ou uma hiperligação no texto) que remete para o exato momento da grande entrevista em que o Luís Martelo fala sobre o assunto. Pensámos que esta ideia se pode materializar de uma das seguintes formas:
Crónica
Quando o grupo de trabalho definiu os sem-abrigo como a comunidade de pessoas “à margem da sociedade” que ia investigar, dois aspetos foram imediatamente depreendidos. Em primeiro lugar, que toda a atualidade que é atribuída a este tema é justificada, uma vez que estes casos de pessoas a encontrar na rua o último reduto da sua sobrevivência tem vindo a crescer a olhos vistos e nada indica que esta tendência vá mudar nos próximos tempos. Em segundo lugar, reconhecemos que os nossos olhos, apressados pelo ritmo da faculdade e acostumados, desde cedo, a uma estrutura familiar estável não eram, de todo, os mais adequados para encarar este assunto. Para realizar esta investigação foi preciso olhar com atenção para aquilo que se costuma ignorar e até mesmo esconder e ver com olhos de ternura aquilo que normalmente se vê com escárnio.
Uma vez mentalizados, seguimos em frente sempre com o lema da esperança no coração: “Chove, mas não há vento”. Para as inúmeras pessoas com quem nos cruzámos (e tantas delas ainda em situação de sem-abrigo) isto significa encontrar algo positivo na ruína dos dias. Para nós, jornalistas em construção, esta frase motiva-nos a dar o nosso máximo para que, através do nosso ofício, possamos assinalar estes casos tão comuns de desigualdade e injustiça social.