CIDADANIA

Entre Likes e Limites

O mundo digital é hoje o grande palco das novas gerações, mas será que as crianças estão preparadas para os desafios que ele traz? Como se equilibram entre a liberdade de se expressarem e os perigos invisíveis que espreitam por detrás de cada clique? E, no meio deste labirinto tecnológico, será possível educar os mais novos para uma cidadania digital consciente?

Maria Leonor Prim, Maria Francisca Castro

Gerações à sombra do digital

Consegues imaginar um mundo onde cada gesto, cada movimento, cada palavra é gravada, transformada numa imagem, convertida em dados estatísticos? Um mundo onde, mesmo sem sair de casa, é possível ser visto por milhões de pessoas. Um universo onde as crianças crescem não apenas a brincar com um lego ou uma bola de futebol, mas a mostrarem-se a expressarem-se, a posicionarem-se numa plataforma online. 

Este é o cenário digital em que vivem as novas gerações, onde as redes sociais não são apenas plataformas de comunicação, mas também espelhos de uma sociedade em constante transformação. Se antes, a infância era marcada pelas tardes intermináveis na rua, pelos risos e pelas brincadeiras com os amigos, hoje, muitas crianças experimentam o mundo a partir de um ecrã. No lugar dos parques infantis, as plataformas digitais tornaram-se o novo ponto de encontro, onde as trocas de olhares acontecem em tempo real, mas por trás de um dispositivo electrónico. Mas se o digital trouxe novos horizontes, também trouxe um labirinto de questões que nem sempre são fáceis de compreender. 

Numa época em que a imagem e a presença online se tornaram quase uma exigência, muitos jovens, com apenas alguns anos de vida, já estão imersos nas complexidades do que significa ser visível. A pressão para ser “conhecido” e “reconhecido” no vasto oceano de conteúdo digital é uma realidade para muitos. Mas, ao mesmo tempo, é difícil escapar da armadilha do imediatismo: a necessidade de constantemente consumir e produzir, de estar atualizado, de ser o mais rápido, de ser perfeito, o mais original. 

É como se vivessem numa linha ténue entre serem as estrelas do próprio show ou se perderem nesse espetáculo infinito. O resultado? Um misto de autossuficiência e vulnerabilidade, onde as emoções são muitas vezes filtradas e adaptadas antes de serem mostradas aomundo. Como se a humanidade se medisse em seguidores, a singularidade se esvaziasse dando lugar a repetidores de modelos aparentemente fortes mas essencialmente frágeis. A coragem que se manifesta atrás de um ecrã pode desvendar uma vulnerabilidade atroz onde a máscara toma conta do ser e onde o ser se esconde de si mesmo.

Vídeo introdutório que apresenta dados e estatísticas juntamente
com os depoimentos reais de crianças de 8-9 anos, recolhidos na escola primária.

Neste novo paradigma, o desafio já não se trata apenas de compreender o mundo, mas encontrar-se dentro dele. As fronteiras entre o real e o virtual esbatem-se, deixando os mais jovens à deriva num espaço onde a autenticidade é constantemente negociada. Já não basta perguntar “Quem sou eu?”, mas sim “Quem sou eu aos olhos de quem me assiste?, uma interrogação que se constrói ao ritmo de comentários, gostos e partilhas. 

E, no entanto, há algo profundamente humano neste processo. Porque, mesmo num mundo digital, as crianças e os jovens continuam à procura do que sempre procuraram: pertença, validação, autentificação, um lugar onde possam ser quem são – ou quem desejam ser. Mas essa procura, que outrora acontecia em círculos íntimos, desenrola-se agora sob uma exposição incessante, numa arena global, onde os holofotes nunca se apagam e os olhares estão constantemente fixos e atentos a cada pormenor. 

Ainda assim, há um brilho de esperança. Em meio à pressão e ao ruído, há jovens que desafiam as expectativas, que transformam o digital em algo mais do que uma montra. São contadores de histórias, vozes de causas maiores, criadores que olham para as plataformas como pontes para unir, e não como muros para se esconder. Apesar de tudo, mostram-nos que o digital não tem de ser uma prisão; pode ser um instrumento de expressão, de mudança, até de revolução. 

A questão, talvez, não seja apenas o que este mundo digital está a fazer às novas gerações, mas o que estas gerações podem fazer deste mundo. Porque, no fundo, as redes sociais não passam de espelhos de nós próprios. E a forma como escolhemos habitá-lasdefinirá não só o futuro delas, mas também o nosso. Afinal, não é na tecnologia que reside a resposta, mas no que somos capazes de fazer com ela.

Fotografia de Malu Matos, uma criadora de conteúdos digitais com 17 anos. Fonte: Instagram da Malu Matos.

Malu Matos: Malu Matos, com 17 anos, começou a criar conteúdo aos 12 anos com a família no YouTube e depois focou-se no Instagram e TikTok. Valoriza a consistência nas redes sociais, mantendo um equilíbrio saudável e evitando o consumo excessivo. Destaca o apoio da comunidade, mas também enfrenta desafios como a pressão, comparação e a necessidade de manter a autenticidade, sem expor demasiado a sua vida pessoal.

Fotografia de Diogo Parra, um criador de conteúdos digitais com 19 anos. Fonte: Instagram do Diogo Parra.

Diogo Parra: Diogo Parra, de 19 anos, começou a criar conteúdos nas redes sociais com 16 anos, focando-se em temas que remetem ao humor. Ele faz isso por diversão e sem pressões. Utiliza plataformas como TikTok e Instagram para entretenimento e comunicação com amigos. Embora tenha lidado com comentários negativos no início, isso ajudou-o a amadurecer. Diogo descreve-se como ambicioso, competitivo e divertido, e vê as redes sociais como uma ferramenta para promover um ambiente positivo.

Conectados ou desconectados?

Na tentativa de compreendermos quem vive na internet e para a internet conhecemos Malu Matos e Diogo Parra. Com apenas 17 anos, Malu Matos já se tornou uma figura de destaque nas redes sociais, conquistando audiências no Instagram e TikTok. A sua jornada começou de forma peculiar, aos 12 anos, quando participou num projeto da Toys ‘R’ Us, onde, pela primeira vez, se viu diante das câmaras. Desde então, Malu transformou o universo digital no seu palco e laboratório criativo. Contudo, por detrás daquilo que é visível publicamente, esconde-se um trabalho extenuante, marcado por desafios emocionais e criativos. “As redes sociais são um reflexo da vida real, mas nunca devemos esquecer que, por detrás de cada publicação, há uma pessoa”, afirma Malu, sublinhando o impacto emocional da exposição constante.

Diogo Parra, de 19 anos, é outro exemplo de alguém que encontrou nas redes um canal para expressar a sua criatividade. Começou a criar conteúdos durante o confinamento, com 16 anos, focando-se no humor como forma de entretenimento. “Nunca encarei isto como uma obrigação. Sempre fiz por prazer, sem me preocupar em ser regular”, partilha. Para Diogo, as redes são uma porta de entrada para oportunidades e ligações valiosas, mas trazem consigo um lado mais sombrio: a crítica e os comentários maldosos. “No início, as palavras negativas abalavam-me, mas com o tempo aprendi a não dar importância. Isso ajudou-me a crescer e a amadurecer”, confessa. 

Apesar de se moverem em universos digitais diferentes, tanto Malu como Diogo aprenderam a estabelecer limites saudáveis. “Nunca partilho informações demasiado pessoais, nem dados sobre a minha família”, explica Diogo. Malu adota uma abordagem semelhante, publicando apenas o necessário e partilhando conteúdos de viagens apenas depois de ter deixado os locais. Ambos concordam que preservar a autenticidade num espaço tão público é essencial. “Sempre fui igual, tanto online como na vida real”, reforça Diogo. 

Ainda assim, a vida digital acarreta algumas preocupações para os mais jovens. Débora Matos, mãe de Malu, partilha uma visão reflexiva e preocupada sobre este fenómeno. “Desde pequena, pela sua ligação ao mundo artístico, percebi que a Malu tinha um ‘bichinho’. Sempre a incentivei a perseguir os seus sonhos e procurei ajudá-la no controlo e filtragem do que podia no mundo da internet. A minha filha é muito organizada, mas apoio no que posso: ideias para conteúdos, ajuda na gestão de timelines, acompanhá-la a eventos e incentivá-la a priorizar a escola”, revela Débora. 

Débora não esconde a sua inquietação relativamente à substituição do contacto humano pelo virtual. “Não considero normal que os convívios presenciais sejam trocados por interações virtuais. O contacto cara a cara é essencial e está a ser substituído por uma dúzia de mensagens.” Quando questionada sobre o papel dos pais no uso precoce da tecnologia, é categórica: “Os pais têm, sem dúvida, uma influência significativa. Muitas vezes, recorremos a dispositivos digitais

para simplificar as nossas tarefas, mas, sem uma orientação clara, as crianças tornam-se alvos fáceis num mundo virtual, frequentemente hostil.” 

Relativamente à problemática do cyberbullying, Débora destaca: “Preocupa-me porque sei que é real, mas preocupa-me ainda mais onde estão os pais e responsáveis dessas crianças. Como é possível não perceberem o que se passa? Porque não existe um controlo mais eficaz sobre a atividade cibernética dos filhos?” Débora considera que a falta de regulação é um problema sério. “Não há qualquer controlo sobre o que as crianças veem ou publicam online. Todos têm liberdade de acesso sem qualquer filtro.” 

A pedopsiquiatra Tânia Rebelo Clemente reforça a importância da educação digital. “O ambiente online é uma faca de dois gumes: oferece oportunidades incríveis, mas também intensifica a ansiedade e a pressão para corresponder a padrões irreais. Muitos jovens criam expectativas desproporcionadas, prejudicando a autoestima e a saúde mental.” 

Para aprofundar o impacto do ambiente digital na infância, visitámos a Escola Básica Parque Silva Porto, onde conversámos com crianças entre os 8 e os 9 anos. Durante a interação, foi notório o fascínio pelo mundo digital, mas também a vulnerabilidade face aos seus perigos. A atividade revelou a urgência de promover uma educação para a cidadania digital desde cedo. Tânia Clemente salienta: “A cidadania digital vai muito além de saber operar dispositivos tecnológicos. É sobre compreender como as nossas ações online afetam os outros e como podemos utilizar estas ferramentas para contribuir de forma positiva.” 

Para Malu Matos, a chave para uma presença saudável nas redes sociais reside no equilíbrio entre o que se partilha e o que se reserva para o âmbito pessoal. “Não quero parecer perfeita, porque não o sou. A minha humanidade também faz parte do que partilho online.” Diogo, por sua vez, acredita que o equilíbrio no uso das redes sociais é uma responsabilidade individual. “Não podemos delegar aos influenciadores

a tarefa de impor limites. Cada utilizador deve refletir sobre como quer interagir com este meio.” 

No final, o mundo digital é mais do que um espelho da sociedade. Ele molda a forma como comunicamos uns com os outros e a forma como nos expressamos. Como Diogo resume: “O que fazemos online reflete a nossa humanidade. Gerir a nossa presença digital é, também, cuidar da nossa marca no mundo.” 

A crescente imersão das crianças no mundo digital traz consigo um conjunto de desafios que exigem uma reflexão profunda sobre a forma como a cidadania digital é abordada nas nossas sociedades. A exposição constante, a pressão por uma presença online autêntica e a necessidade de estabelecer limites claros tornam-se questões centrais na formação das gerações futuras. Como foi possível verificar nas experiências de jovens criadores de conteúdos como Malu Matos e Diogo Parra, o equilíbrio entre a visibilidade digital e a preservação da privacidade e saúde mental é primordial. 

A educação para a cidadania digital não deve ser apenas uma questão de aprender a usar a tecnologia, mas sim de entender os impactos das nossas ações online. A promoção de um uso consciente, responsável e seguro da internet é fundamental para preparar as crianças e jovens para os desafios do mundo digital, sem perder de vista o seu bem-estar emocional e social. Iniciativas como “Desafios SeguraNet” ou “Líderes Digitais” têm o poder de educar sobre o cyberbullying, a cibersegurança e a relevância de um comportamento ético nas redes sociais. 

Além disso, a colaboração com os pais e a educação desde a infância, com programas como a “Academia Digital para Pais”, é imprescindível para garantir que as crianças não apenas se sintam seguras, mas que também compreendam a responsabilidade que vem com a utilização das plataformas digitais. Só com um esforço conjunto entre escolas, famílias e entidades governamentais, será possível formar uma geração de cidadãos digitais mais conscientes, capazes de navegar no vasto universo online de forma saudável, construtiva e feliz. 

O futuro da cidadania digital em Portugal dependerá da capacidade de educar as novas gerações para um equilíbrio entre a liberdade de expressão e a preservação da sua identidade e saúde mental, garantindo que o digital seja uma ferramenta de empoderamento, e não uma prisão de expectativas irreais e pressões externas. 

Aqui estão algumas iniciativas em Portugal que promovem a cidadania digital infantil: 

Desafios SeguraNet: Uma iniciativa da Direção-Geral da Educação (DGE) que visa sensibilizar e educar crianças e jovens sobre segurança na internet. 

Líderes Digitais: Programa que promove a educação digital e a cidadania online entre os mais jovens. 

Escola sem Bullying | Escolas sem Violência: Iniciativa que combate o bullying e promove ambientes escolares seguros e respeitosos. 

Academia Digital para Pais: Programa que oferece formação e recursos para pais sobre segurança e cidadania digital. Esta não é apenas uma história sobre a tecnologia. Trata-se de uma história sobre a humanidade.

Glossário

Cidadania: A cidadania corresponde a um vínculo jurídico entre o indivíduo e o respetivo Estado e traduz-se num conjunto de direitos e deveres. Este conceito expressa uma condição ideal baseada na perceção, quer do indivíduo, quer do coletivo, quanto aos seus direitos e obrigações. 

Cidadania digital: Cidadania digital é a capacidade de participar ativamente da sociedade no ambiente digital de forma positiva, justa, consciente, segura e ética. 

Influencer: São pessoas com um grande número de seguidores interativos nas redes sociais. Exercem uma influência significativa em setores específicos, como da beleza, moda, fitness, turismo e alimentação. 

Cyberbullying: É o bullying realizado por meio das tecnologias digitais. Pode ocorrer nas mídias sociais, plataformas de mensagens, plataformas de jogos e telemóveis. 

Saúde mental: É a base do bem-estar geral e diz respeito a um nível de qualidade de vida cognitiva ou emocional ou a ausência de uma doença mental. Bullying: É uma forma de violência que corresponde a comportamentos agressivos, intencionais e repetidos, exercidos por uma criança, jovem, ou grupo – bully ou bullies – contra outra que não tem possibilidades de se defender.