Pressão e Tabu

Entre a luz e a sombra

O que é que se pede realmente quando se fala da regulamentação da prostituição? Ouvimos aqueles que aguardam pelo dia em que a possibilidade da atividade ser reconhecida aconteça e os que a descartam.

Beatriz Rodrigues, Mariana Santos, Matilde Castelo Branco

A prostituição: uma realidade que persistimos em manter clandestina

A prostituição diz respeito à satisfação sexual que alguém proporciona a outra pessoa em troca de um preço. A prostituta é quem presta estes serviços, aquela que, em caráter geral, pratica sexo em troca de dinheiro ou de outro bem valioso. 

Existem no mundo três sistemas regulamentadores: desde o proibicionista, que condena tanto a mulher que se prostitui como aqueles que facilitam ou auxiliam a atividade, ao abolicionista que não criminaliza a atividade, mas que considera que incorre numa ilegalidade quem tentar obter lucros através da prostituição alheia e, por vezes, também pode condenar o cliente. Passa ainda pelo sistema regulamentarista, aquele que reconhece esta atividade como laboral, estipulando os seus direitos e deveres sociais como se de qualquer outro trabalho se tratasse.

O sistema português é abolicionista, ou seja, a atividade não é proibida nem regulamentada, existindo, ainda assim, restrições. A atual legislação que regulamenta a prostituição foi implementada a 1 de janeiro de 1982, e, a partir dessa data, a prostituição deixou de ser criminalizada. Contudo, persistiu um crime associado a esta atividade: o lenocínio, ou seja, a promoção, encorajamento ou facilitação da prostituição como, por exemplo, bordéis, grupos de prostituição ou outras formas de proxenetismo. Em Portugal, a atividade da prostituição não é reconhecida como uma profissão, mas também não é criminalizada. 

A regulamentação da prostituição tem sido uma questão fortemente debatida. Existe uma pressão sobre os órgãos legislativos para que haja um enquadramento legal da atividade e para que esta seja reconhecida como uma profissão, podendo assim, quem a pratica, usufruir das mesmas regalias sociais e proteção que outros trabalhadores de diferentes áreas. Exige-se que se discuta a questão deixando os estigmas de lado. Do outro lado, encontramos aqueles que se opõem afirmando que a prostituição não é mais do que uma violência sobre aqueles que se prostituem e que, por isso, nunca deverá ser vista como uma profissão igual às outras. 

“O dinheiro limpava-me as lágrimas”

Conceição Mendes é assistente social do “Ninho”, uma Instituição Particular de Solidariedade Social (IPSS) que tem como missão resgatar mulheres que se encontram em situações precárias devido ao exercício da prostituição. 

Iniciou o seu trabalho na instituição quando tinha apenas vinte e quatro anos. Não queria acreditar no testemunho da primeira mulher que ouviu. “Fiquei chocada com as histórias que aqui ouvi. Tanta violência numa história só. Não conhecia nada. Não conhecia nenhuma mulher que se prostituía e não havia internet nem as tecnologias que há hoje. Lembro-me de quando aqui cheguei e ouvi a primeira história, pensei: ‘bem, isto deve ser um teste para verem se eu aguento levar esta bagagem para casa todos os dias’.”

Apercebeu-se, rapidamente, de que não se tratava de um teste. As inúmeras histórias que ouvia eram muito semelhantes. Estas pessoas tinham um percurso de vida marcado pela extrema violência, que começava, recorrentemente, na infância. 

Contou que, quando começou a trabalhar no “Ninho”, este já existia em Portugal há cinquenta e três anos. A instituição tinha surgido em França, quando um padre francês, ao passar numa zona de Paris conhecida por ter várias prostitutas, decidiu parar e perguntar-lhes o porquê de estarem naquela situação. Depois disso, foi convocado pelo bispo por ter sido visto a falar com aquelas mulheres. O padre afirmou ao bispo que não estariam a seguir o Evangelho se não as ajudassem. E assim nasce o “Ninho” em França.

A instituição surge em Portugal quando uma inspetora geral dos serviços prisionais, Ana Maria Braga da Cruz, pediu ao Estado para instalar um “Ninho”. Nessa altura, a prostituição era proibida. A mulher que fosse apanhada a prostituir-se ia presa. Chamavam-se medidas de segurança que podiam ir de três meses a três anos. Havia muitas que ficavam lá os três anos porque chegavam cá fora e não tinham condições, refere.

Conceição, revela que o “Ninho” contribuiu para que esse sistema fosse abolido. Em 1982, com a entrada da atual legislação em vigor, a mulher que se prostitui deixa de ser criminalizada.

Apesar de o “Ninho” conversar quer com homens, transexuais ou homossexuais, a assistente social admite que na grande maioria quem está naquele meio são mulheres. “Não temos os serviços de apoio para dar aos homens como damos às mulheres, mas também trabalhamos com o sexo masculino. Há igualdade de género. Mas a realidade dos números e dos factos é esta – há mais mulheres na prostituição do que homens.

Quanto ao papel da instituição, disse-nos que se deslocam aos locais onde as pessoas prostituídas costumam estar como ruas, casas de prostituição, hotéis, bares, apartamentos e entregam um cartão escrito em três línguas – português, romeno e inglês. Têm como objetivo mostrar que caso precisem de ajuda, o “Ninho” existe e está lá para disponibilizar auxílio, independentemente, de continuarem na prostituição mais dez, vinte ou trinta anos. Pretendem que estas pessoas sintam que têm alguém que as possa ouvir, que estabeleçam uma relação de confiança para que então o “Ninho” possa iniciar o processo para as retirar da prostituição. “Não vamos com o ‘ai estás na prostituição? Queres sair? Nada disso’. O nosso objetivo é outro, não andamos a pescar pessoas, a salvar pessoas do pecado. Não é isso que nos move”, explicou.

O “Ninho” não trabalha questões individuais, trabalha naquilo que consideram ser um problema social. Sendo que para o “Ninho”, o conceito de prostituição também é muito importante. Diz que é necessário não confundir uma rapariga que bebe uns copos e vai para cama com um homem que depois lhe oferece um carro com prostituição. Sob o seu ponto de vista, isso não é considerado prostituição. Reforça que prostituição é um problema social que envolve práticas sexuais, heterossexuais ou homossexuais, com diversos indivíduos a troco de dinheiro dentro de um sistema organizado. 

O que preocupa o “Ninho” é estar na prostituição devido a situações traumáticas e a falta de dinheiro para sobreviver. Para a associação interessa combater as causas que levam à prostituição. “É esta organização do sistema, que para mim, é completamente diferente. Nós existimos para ajudar os milhares de mulheres que estão numa situação que lhes causa sofrimento. Não é para comprar uns Louboutin ou uma mala Louis Vuitton. É porque precisam do dinheiro para sobreviver que recorrem à prostituição. Para o “Ninho”, os casos de mulheres que se prostituem porque querem, não constituiu um problema social. 

Mostra-se preocupada com o futuro, referindo que não lhes interessa a moral e os bons costumes. No entanto, afirma não ser justo vivermos numa sociedade onde uma pessoa que tenha dinheiro possa comprar outra para satisfazer as suas fantasias sexuais. 

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Umas das questões que também é levantada é a saúde mental destas pessoas. Refere que, por norma, são raparigas com muitos traumas que precisam de psicoterapias prolongadas. Muitas dizem que se consideram atrizes. Costumam dizer que o corpo entra no quarto, mas a alma não. Têm de estar sempre a fingir que são outra pessoa, estão sistematicamente a dissociar o seu corpo do seu todo, portanto, quem é da área da psicologia defende que isto tem danos graves para estas pessoas.

Ainda sobre a saúde, Conceição defende que a questão levantada na petição da Ana Loureiro é falaciosa. Argumentando que em Portugal, tanto os portugueses como os estrangeiros com residência válida, têm direito à saúde, acrescentando que os ilegais também o têm, todavia, o custo da taxa moderadora é muito superior. “É falacioso dizer que se descontarem têm direito à saúde. É completamente mentira dizer que a regulamentação dá mais direitos às mulheres, em termos de saúde.”

Em relação aos exames médicos que são considerados necessários para as pessoas que se prostituem, defende que não é justo serem apenas as prostitutas a fazerem testes às doenças sexualmente transmissíveis, e não os clientes. Acrescenta que quando houve um sistema regulamentarista em Portugal, era isso que acontecia, só as prostitutas é que realizavam testes às doenças sexualmente transmissíveis. “Ao cliente ninguém toca, é o eterno anónimo”, disse.

Conceição, em entrevista, disse que quando confronta muitas das mulheres com quem lida com os riscos para a sua saúde que a prostituição acarreta, estas lhe dizem que as suas vidas são de curto prazo, nunca sabem como será o dia de amanhã. “Quem é que quer uma profissão para aqueles que são mais próximos que envolve tantos riscos ou de serem maltratadas ou mortas?”

Por vezes, têm histórias de vida tão traumáticas que acabam por confessar à assistente social que acham que merecem a situação em que estão ou que acreditam que a prostituição é apenas mais um acontecimento violento nas suas vidas. Conceição, confidenciou que uma das mulheres que acompanhou lhe disse que a sua vida já tinha sido tão má que a prostituição nem algo assim tão mau. “Uma mulher contou-nos que era abusada pelo avô e que depois dos abusos ele lhe comprava vestidos, dizendo que era porque gostava dela. Era como se ela fosse uma princesinha. Imaginem o que isto faz a uma criança. Isto tem impacto naquela que será a vida sexual destas mulheres. Sabem que depois da relação sexual tem de haver algo em troca.”

Muitas mulheres, na primeira abordagem com a assistente social tentam ‘glamourizar’ a prostituição alegando que se não fosse isso nunca teriam estado em hotéis de luxo ou comido lagosta. Mas, quando começam a estar mais à vontade contam os episódios mais violentos. Muitas alegam que têm truques para que o ato sexual seja mais rápido e que quando acabam o serviço vão vomitar para a casa de banho, tendo apenas como o consolo o dinheiro deixado em cima da cama. “O dinheiro limpava-me as lágrimas”, diziam-lhe. 

A assistente social, salientou que quanto mais dinheiro tivesse o cliente maior era a perversidade dos atos sexuais: “quando um homem acha legítimo poder comprar uma mulher, usá-la como um objeto e só ver nela todos os orifícios que ela possa ter, isto realmente é a maior das violações daquilo que é a igualdade entre homens e mulheres.”

O “Ninho” considera que tem uma grande mais valia, a de acompanhar as pessoas que lhes pedem ajuda. Na entrevista, Conceição chegou a referir que oferecem acompanhamento de manhã até à tarde, possível através de uma equipa multidisciplinar que conta com psicólogos, assistentes sociais e educadores sociais. “Demos conta que as mulheres estavam desorganizadas em muitos níveis, por vezes, dormiam de dia e prostituíam-se à noite, a somar aos vícios do tabaco, do álcool e das drogas. Elas precisavam de um espaço seguro para ganharem competências sociais e ganharem rotinas com vista à reinserção social.

Devido a esta assistência disponibilizada pela instituição, afirma que uma mulher depois de ter passado pelo “Ninho” raramente volta a prostituir-se. “É raríssimo. Isto tem uma razão de ser. Quando uma pessoa passa a gostar de si, já não se permite voltar à mesma situação.”

Quanto à regulamentação, Conceição diz que a posição do “Ninho” é completamente contra. Usando as palavras de um psiquiatra que trabalha na associação: “não nos deve servir de consolo que as pessoas se autodestruam de forma legal, higiénica e regulamentada.” Na opinião da assistente social, a prostituição não pode ser de maneira alguma considerada uma profissão, afirma que é uma violência e não um trabalho. A lei criminaliza o lenocínio e para o “Ninho” não há nada contra isso. 

“A prostituição não deve ser regulamentada. As mulheres que estão na prostituição não estão lá por prazer ou porque querem. Não querem ter uma carreira para a vida”, argumenta. Acredita que a prostituição nunca será regulamentada em Portugal, uma vez que também em países onde a prostituição está regulamentada, como a Alemanha e a Holanda, já estão a querer recuar na lei porque se aperceberam que as mulheres que se prostituem nesses países são estrangeiras e viram na prostituição uma fuga à pobreza.

“É que não venham dizer que trabalhador sexual é menos estigmatizante que prostituição. As mulheres com quem trabalho contam-me que o estigma está dentro delas. ‘Chamem-nos o que quiserem, mas é puta toda a vida’, dizem-me elas. Não nos venham com a conversa de que mudam para trabalhadora sexual e que elas não sentem o estigma”, afirma a assistente social.

Para Conceição há uma diferença muito ténue entre a escravatura e a prostituição. Não basta acabar com os escravos, mas sim com o sistema esclavagista, rematando que a prostituição ainda existe porque há uma rede organizada para que tal aconteça. Por último, confessa que a regulamentação da prostituição é um grande perigo, pois, iria ser um abrir portas a traficantes e entidades criminosas. “Quem se beneficia com isso é quem quer explorar estas mulheres. Não são elas que vão ser beneficiadas.”

“Todos sabem que existe, mas preferem manter tudo na obscuridade”

Ana Loureiro é uma ex-prostituta que, atualmente, gere duas casas de prostituição. Ana confessa que foram as dificuldades financeiras, após ser dispensada do Infarmed, onde trabalhou vários anos, e a necessidade de sustentar os filhos que a levaram a prostituir-se. A entrada na prostituição não foi fácil e afirma que foi uma decisão limite, de extremo desespero.

Considera que, atualmente, as pessoas que entram no mundo da prostituição são mais conscientes da sua decisão. Conta que existem médicas, advogadas ou até professoras a trabalhar consigo pela necessidade de receber algum dinheiro extra, “da mesma forma que alguém arranja um part-time numa empresa de telecomunicação, por exemplo” explicou.

A ex-prostituta refere ter sido discriminada pela sociedade, ter sido vista como uma vítima, como algo muito pequeno e sem sentido, mas ela não se revia na imagem que os outros tinham dela. “A prostituição fortaleceu-me. A prostituição não me diminuiu. Eu consegui a minha independência monetária.”

Para explicar como nem todas as pessoas que se prostituem vêm de classes desfavorecidas, partilhou um pouco do seu passado: “venho de uma família de classe média/alta, de uma boa família que até vem na história de um livro. A minha família tem nome. A minha falecida mãe até era uma sexta filha e eu fui a única que aqui vim parar, mas também tenho formação académica em Direito, também tenho um passado no Ministério da Saúde, tenho casa própria. Portanto, se formos a ver eu não venho de uma classe desfavorecida. Não foi isso que me fez entrar na prostituição. A entrada para esta passa, essencialmente, por maus momentos da vida de alguém.”

Hoje em dia, é das poucas ex-prostitutas que dá a cara e que luta diariamente para que a prostituição seja regulamentada, sendo responsável por uma petição para legalizar a prostituição, que conta com mais de cinco mil assinaturas, e que já foi levada para debate em Assembleia da República. 

A empresária do sexo deu o seu parecer relativamente à legislação que vigora em Portugal e que não reconhece a prostituição: “Somos o único país que tem essa lei. É uma legislação que devia estar abolida. Nos tempos que correm, as pessoas que vivem na rua são pessoas que perderam as suas capacidades económicas. Não porque querem, mas porque a vida assim o quis. Não são vadios, não são pessoas que devem ser menosprezadas pela sociedade.” 

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Garante, no entanto, que nem sempre foi assim: “Anos antes de se alterar a legislação, a prostituição era legal. As raparigas que trabalhavam nesta área tinham uma “carteirinha” onde estavam registadas. Havia uma maior proteção até por parte da polícia, na altura, e as casas estavam todas identificadas.”

Aliado a isto, um dos aspetos sobre o qual fala é na necessidade de existir um registo das casas de prostituição para que haja fiscalização destes espaços.  Dá um exemplo do porquê de ser crucial este tipo de regime de controlo: “suponhamos que eu sei que existe uma casa dessas e eu faço uma denúncia à polícia. A polícia faz uma pré investigação para verificar se aquilo que eu estou a dizer é verdade, e depois sim, faz um relatório e remete ao Ministério Público. O Ministério aceita e envia para uma esquadra e, depois, é distribuído por uma brigada de investigação. A brigada tem de fazer, no mínimo, seis meses de investigação e relatar tudo. Ao fim de seis meses, faz um relatório, anexa provas e envia ao Ministério Público para passarem um mandato. O Ministério dá autorização do mandato e envia de novo para a brigada. A brigada quando se vai meter no terreno para realmente ir à casa, as menores já não estão lá. A investigação morre ali. Se as casas estivessem registadas, assim que existisse uma denúncia, a polícia podia entrar a qualquer momento.”

Outro assunto sobre o qual debate é o lenocínio. A ex-prostituta não concorda que todo o tipo de lenocínio seja penalizado da mesma forma e sugere que se faça uma distinção entre o lenocínio simples e o lenocínio agravado. Para Ana Loureiro, que o que devia ser penalizado era o lenocínio que descreve como agravado, que fomenta a prostituição, que realmente agride, retira documentos e que age sobre coação.

Recusa aceitar que a atividade que pratica, sendo dona de duas casas de prostituição, seja vista como um crime aos olhos da sociedade. Está certa de que a sua profissão é tão legítima como qualquer outra, uma vez que todos os que trabalham para ela o fazem de livre e espontânea vontade, e em segurança, algo que ela se responsabiliza em assegurar. Para além disso, conta também que fornece todas as acomodações aos seus funcionários e assume os custos de publicidade. 

Face a este debate, Ana faz uma comparação: “Eu tenho um anúncio, mas então e os jornais que têm classificados? E os sites? Também fomentam a prostituição, então também é uma forma de lenocínio, correto? Mas este lenocínio, é um lenocínio grave? É um lenocínio que atinge o corpo da mulher com maus tratos? Que obriga a trabalhar? Não.” 

Desta forma insiste que o lenocínio que pratica devia ser qualificado como simples. Sobre o lenocínio que designa como agravado, não esconde que “deveria constar no código do processo penal e ser cada vez mais penalizado.” Não deixa de frisar que a sua prioridade é a regulamentação da prostituição e que a regulamentação do lenocínio vem por arrasto. Afirma que o que quer com a legalização são apenas os direitos de cidadania e de igualdade dentro da sociedade.

Tendo em conta os problemas subjacentes à regulamentação, mostra-se consciente dos factos, mas, ainda assim, defende a necessidade de existir uma legislação. “Há raparigas que estão nesta atividade há mais de dez anos. É justo não fazerem descontos? É correto que as que têm um horário fixo de trabalho, não tenham direito a uma baixa quando estão doentes? Não é correto. É correto elas não terem um contrato de trabalho? Todas querem ter um contrato de trabalho porque, por exemplo, se quiserem pedir um empréstimo bancário, não têm direito. Se quiserem ter uma baixa, não têm direito. Se quiserem pedir a reforma, não têm direito. Não têm direito a nada.” Refere, também, que ao haver contratos de trabalho na prostituição se estaria também a impedir situações de ilegalidades que envolvessem, por exemplo, menores ou estrangeiros ilegais.

Diz-se atenta aos entraves impostos pela sociedade, acreditando que a legalização pode perfeitamente combater essas dúvidas. “A legislação não vem permitir o aumento da prostituição, que é isso que as pessoas não percebem. A legislação da prostituição vem fazer com haja uma redução substancial na prostituição. Fazendo também com que existam regras, limitações, sanções, punições, entre outros. Tudo o que não existe no momento.” Termina esta questão afirmando: “as pessoas não percebem que isto é uma profissão para quem cá anda.”

Para Ana, o maior problema da não regulamentação da prostituição é a idade. Refere que se preocupa bastante com a entrada de raparigas jovens, uma vez que conhece a dura realidade. Defende que para se poder exercer a atividade, deveria ser obrigatório apresentar o cartão de cidadão como comprovativo da idade – neste caso, reivindica que a idade mínima seja de 21 anos porque é quando acha que as pessoas já têm maturidade suficiente.

Revela que quando entrou na prostituição, rapidamente pagou as dívidas e afirma que aquilo que se ganha num mês na prostituição é talvez o mesmo que se ganha em mais de um ano com contrato num trabalho dito “normal”. Acredita que depois de alguém estar a ganhar tão bem, de ter as contas todas pagas, muito dificilmente consegue sair, e mesmo saindo, acaba sempre por voltar ou até por conjugar um outro trabalho com a prostituição.

Assim, Ana deixa claro que é necessário haver uma legislação que vede o acesso à prostituição de menores que são facilmente levados pelo dinheiro e por bens materiais. Alega que os clientes usam o dinheiro como meio de persuasão, tornando-se difícil não ceder à tentação. Diz que as pessoas não entendem que o que se está a reivindicar com a sua petição e que tem em vista a proteção dos mais novos: “Eu não estou a acautelar só o futuro dos meus filhos, eu estou a acautelar o futuro dos filhos de toda a sociedade”, referiu.

Explica que vivemos numa sociedade hipócrita, pois “todos sabem que existe, mas preferem manter tudo na obscuridade e clandestinidade.” Refere também que a prostituição não é um fenómeno social, alegando que a prostituição existe desde sempre.

No que toca à sua petição, justifica o facto de as pessoas não assinarem ou de serem contra a regulamentação com o estigma e o preconceito. Revela que o maior problema que tem enfrentado é no chegar às pessoas que não se demonstram disponíveis para a ouvir explicar os moldes da legalização e, por isso, aproveita todas as entrevistas para partilhar os seus objetivos.

Recorre também aos diretos nas redes sociais para tentar projetar a sua voz relativamente à temática. Por norma, são as gerações mais novas que têm uma mente mais aberta no que toca a estas questões que revelam interesse e tentam perceber a sua perspetiva. É nos mais jovens que coloca a sua esperança para mudarem as restantes mentalidades em relação ao assunto da prostituição.

Falou-nos também sobre o seu livro Andreia Montenegro, eu sou uma acompanhante de luxo. Diz que a realidade da prostituição, o mal, o bom e o porquê, é explicada naquelas páginas. Divulgou que no final do livro existe um link que remete para a sua petição, para que as pessoas depois de lerem a irem assinar.“No livro eu explico tudo isto. Explico o significado de colocarem os “ursinhos” nas fotografias, que é para atrair os pedófilos porque são os que pagam mais. Explico o facto de pedirem mulheres que estejam com o período, porque pensam, na cabeça deles, que estão a tirar a virgindade a uma criança. Isso está tudo explicado. É um mundo oculto, que todos julgam conhecer, mas que, na realidade, ninguém conhece. Nós podemos ter uma opinião, mas daí a eu dar a minha opinião como uma certeza, quando nunca estive ali, quando nunca tive aquela experiência, quando nunca vivenciei nem cinco minutos daquela atividade. Como é que eu posso falar como se tivesse a verdade na minha boca?”

Conta, com a experiência de alguém que já está neste mundo há alguns anos, como é o seu meio de trabalho: “Aqui lidas com o homem na sua verdadeira essência, aquilo que ele realmente é, demonstra aqui. Eu costumo dizer: nós somos o tapete da sociedade onde toda a gente vem deixar a sua própria porcaria. Então, quando começas a conhecer este mundo, mudas a tua maneira de ser e de estar na vida.” Concluiu dizendo: “Há vários tipos de prostituição, só que o nosso é mais claro. É um modo de prostituição mais notório. Mas é este que me interessa legalizar, porque realmente é este que está muito mal no momento.”

“A mulher quando entra na prostituição não é uma mulher qualquer, é uma mulher já extremamente marcada”

João Néu, formado em Psicologia Clínica, trabalhou quase toda a sua vida com pessoas em situações extremamente desfavoráveis, ou seja, aquele tipo de utentes que não podem pagar as consultas e, portanto, vêm de instituições financiadas, direta ou indiretamente, pelo Estado.  

É o caso do “Ninho”, uma instituição de reabilitação de prostitutas, a primeira instituição na qual trabalhou e onde desempenhou funções durante treze anos. Posteriormente, trabalhou com pessoas sem-abrigo e deu, também, consultas a título privado. No entanto, considera que a base da sua atividade são as relações desfavorecidas. 

Contou como começou a exercer funções como terapeuta no “Ninho”: “Um dia contactaram-me, já bastantes anos depois do surgimento do “Ninho” em Portugal, para saber se eu achava que aquela população tinha problemas psicológicos suficientes para justificar um psicoterapeuta. Para obter respostas, comprometi-me a fazer uma avaliação durante alguns dias. Depois disso, constatei que, de facto, nunca tinha visto tantas pessoas tão tristes. E por lá fiquei. Fiquei a fazer terapia como uma abordagem complementar àquele trabalho que já lá se fazia. Foi assim que entrei no “Ninho” e que fiquei durante treze anos.” 

Deixa claro que a amostra com que teve oportunidade de trabalhar não é um espelho do mundo da prostituição, uma vez que, só trabalhou com pessoas que pediam ajuda para deixar aquela vida. Contudo, com base no seu trabalho, João defende que a prostituição tem impacto psicológico na pessoa prostituída. Diz que todas as pessoas com quem trabalhou apresentavam problemas psicológicos de variada gravidade e que, por vezes, o difícil era distinguir quais eram os adquiridos na vida da prostituição e quais os que já as acompanhavam quando iniciavam esta atividade. 

“A razão das perturbações [mentais] associadas à vida de prostituição são lógicas de certa maneira tendo em conta àquilo que nós sabemos de Psicologia Clínica, uma vez que elas são sujeitas a muitas situações de maus tratos, de violência, às vezes extrema, de ameaça, de perigo iminente. Nem todas, mas é um caso de sorte ou azar, de probabilidade.”

No entanto, não deixa de se referir ao trauma e às fragilidades anteriores. “Gostaria de vos dizer que a mulher quando entra na prostituição não é uma mulher qualquer, é uma mulher já extremamente marcada”, contou o psicólogo. As histórias de vida que teve oportunidade de ouvir mostraram-lhe que a violência que é vivida na prostituição acresce a uma infância ou juventude perturbada. Durante os seus treze anos no “Ninho” diz nunca ter ouvido ninguém com um percurso semelhante ao seu, um percurso que ele descreve como “normal”.

Afirma também que era comum estas pessoas não terem tido presentes um dos pais ou, até os dois ao crescer e acabavam numa situação afetiva em que o desamor, a falta de afetos, era o que o conheciam desde pequenas. Isso resultava numa visão do mundo e também delas bastante deturpada, comparativamente à de uma criança que cresceu num ambiente saudável. Na sua opinião, estas questões de abandono, rejeição, maus tratos, no início da vida, juntamente com cenários desencadeadores, por exemplo, de extrema pobreza, levavam-nas a recorrer à prostituição. 

Quando questionado sobre se o impacto que a prostituição tem na pessoa prostituída também se verifica naqueles casos em que a atividade é exercida voluntariamente, João disse que foram raros os casos em que alguém era obrigado a prostituir-se, era quase sempre de forma voluntária que começavam. No entanto, reflete sobre a voluntariedade das nossas ações e afirma que, na nossa vida, somos sempre impulsionados por um determinado número de fatores: “Nós escolhemos porque é mais interessante ou porque os dados de determinadas situações são mais fortes, portanto, aí a liberdade não é absoluta, isso não existe.”

Perante esta questão, o psicólogo decidiu partilhar a história de uma utente:

“Vou-vos contar isto, talvez como uma história de vida, a história de vida de uma das primeiras prostitutas com quem trabalhei. Eu recordo-me muito mais das primeiras. A partir de determinados anos teriam menos impacto em mim. São histórias que eu, de facto, não estava habituado a ouvir falar”, começou.

“Eu tive uma rapariga, que foi uma das primeiras, e que foi das poucas muito jovens que lá apareceram, porque geralmente as mulheres que lá apareciam a pedir ajuda, eram pessoas já perto dos 40 anos, ou até mais velhas, ou seja, com muitos anos de prostituição e muito marcadas. Mas esta aqui tinha apenas dezoito anos e contou-me que quando tinha cerca de treze anos, foi violada pelo irmão mais velho.

Não sei quantas vezes a violação aconteceu, não me recordo. Ela não contava aos pais porque tinha medo do irmão, ele ameaçava-a. O irmão que devia ter uns quinze anos.

Por volta dos catorze, ela engravida. Nessa altura ela não pode esconder a gravidez, e teve que contar aos pais. Os pais ficaram tão impressionados que tiveram uma reação um bocadinho desadequada, ou seja, condenaram-na a ela. Condenaram-na por ter seduzido o filho. Tinham que arranjar um culpado naquela situação e então correram com ela para casa de uma tia-avó. Ela foi e teve a gestação toda em casa dessa tia. 

Teve o filho perto dos quinze anos. Depois dos primeiros tempos começou a trabalhar para alimentar a criança, para cuidar dela de alguma maneira, para ganhar dinheiro. 

Um dia quando chega a casa, a criança tinha desaparecido. Depois de ela nascer, os pais, a tia-avó e uma assistente social, arranjaram maneira de orientar a criança para adoção sem conhecimento da mãe. 

Após isto, ela não aguentou, sentiu-se injustiçada pelas pessoas que tinham obrigação de a proteger. Saltou da varanda da casa onde estava com a tia-avó e, por muita sorte, não morreu. Ficou com as pernas partidas e cheia de lesões, e teve que estar internada no hospital durante dois ou três meses. Não recebeu visitas. 

Quando um dia tem alta do hospital e volta para casa da tia-avó, esta põe-na na rua porque diz que não queria malucas lá em casa ou qualquer coisa do género. Ela vai para a rua, sem abrigo. Anda a pedir os restos nos restaurantes. Um dia encontra na rua uma prostituta que lhe disse que ela não precisava de sofrer o que ela estava a sofrer e que com a idade dela podia ganhar bem na prostituição, e assim foi.”

O psicólogo diz ser comuns vários aspetos como a violência infantil e juvenil, a rejeição, a falta de afetos, situações económicas difíceis que fazem com que estas pessoas vejam a prostituição como opção. Refere que para outra pessoa que não tivesse vivido estas situações ou não tivesse tido este tipo de dificuldades, esta atividade não seria ponderada. 

Para ele, as profissões dão um status social, ou seja, estas colam-se muito à imagem que a sociedade tem de nós, e não é qualquer pessoa que, numa situação normal, se vai dedicar a uma atividade tão mal conotada socialmente. “Não é por acaso que quando nós conhecemos alguém lhe perguntamos qual é o seu trabalho”, disse. 

Referiu-se ao empenho verificado a partir do século XIX, nalguns países, no sentido de dignificar a pessoa que se prostitui. Reconhece este esforço como uma boa intenção, uma vez que, começa a haver consciência de que a prostituição é uma atividade presente nas nossas sociedades, mas que é extremamente rejeitada e, por isso, é importante lutar para que não seja assim.

Fala no caso do Norte da Europa em que surgiu a ideia de institucionalizar a prostituição. Dá o exemplo da Holanda em que diz que se tentou que a prostituta adquirisse um papel semelhante a ser operário, eletricista, ou outra profissão. 

Apesar de deixar claro que não conhece os países bem o suficiente, afirma não acreditar que este mecanismo tenha êxito na imagem social da prostituição. “Não conheço ninguém desses países, que diga que se a minha filha quiser ser prostituta, pode sê-lo à vontade. Isso não existe, eu não acredito que exista. A sociedade vê a prostituição como algo que transcende a profissão, também se ganha dinheiro, mas não é uma profissão. E de facto, é verdade que relacionadas com a prostituição estão imensas situações. Há estudos que indicam que nos países em que a prostituição é aceite a violência é igual, que o tráfico de pessoas até aumentou, assim como a criminalidade associada ao ambiente em casas de prostitutas. Portanto, esse esforço não foi muito competente visto que não diminui em nada o perigo da prostituição.”

Terminou esta questão ao dizer:

“Para mim, prostituição não é realmente uma profissão, porque ao ser seria uma profissão permanentemente humilhante para a mulher, rejeitada em termos sociais e muito perigosa. Uma profissão normal tem que ser aceitante, mesmo que não seja muito conotada em termos de status social. Até um operário da construção civil, não tem problemas em dizer que é operário, uma prostituta tem. O operário da construção civil não vive num ambiente de perigo, nem de humilhação constante, nem tem um índice de mortalidade/assassinatos muito alto, nada disso acontece. Portanto, a prostituição não pode ser considerada uma profissão, porque se não seria uma profissão próxima da escravatura.”

Para finalizar, o psicólogo falou um pouco sobre o sistema regulamentador atual da prostituição. Para si, o sistema português é o melhor sistema de regulamentação. No entanto, diz que a criminalização do tráfico e do proxenetismo só acontece na teoria, não conhecendo nenhum caso em que estes crimes fossem penalizados. Apesar de achar que o sistema é aparentemente bom, diz carecer de aplicação, de investigação e de punição. Desta forma, refere-se ao que acontece em Portugal como uma situação de permissividade total, ou quase total. 

Considera, contudo, este sistema melhor do que o que é aplicado noutros países, como por exemplo, na China em que a prostituta é presa se for apanhada a exercer a atividade, o que leva o ambiente da prostituição a ser cada vez mais camuflado e, consequentemente, desprotegido. 

Partilhou a sua opinião relativamente ao sistema regulamentador mais adequado: “O melhor sistema seria um sistema semelhante ao português, mas com duas versões, com duas variáveis. Uma é que os traficantes, os proxenetas, fossem realmente criminalizados, não só na teoria, mas também na prática. Em segundo lugar, que houvesse uma abordagem de ajuda e de grande assistência a este tipo de mulheres vítimas. Elas são vítimas antes de serem prostitutas, mas a partir de prostitutas devem ser ajudadas em termos psicossociais. Se houvesse isso podíamos diminuir muito mais a prostituição e diminuir, também, o sofrimento que advém. A partir da minha experiência profissional, optava por isso.”  

Contou-nos ainda que a rapariga sobre a qual tinha falado evoluiu muito rapidamente após ter procurado ajuda no “Ninho”. Depois do tratamento na instituição, ela encontrou um rapaz pasteleiro, casaram e tiveram uma menina. 

“Um dia ela veio-me perguntar o que é que eu achava de ela ir mostrar a criança aos pais, e eu disse que sim, que era uma boa ideia. Ela mostrou-lhes a criança toda orgulhosa, e eles receberam-na como se não se tivesse passado nada. Ela precisou disso para, de alguma maneira, mostrar aos pais que era uma pessoa normal, feliz e que não precisava deles para nada. Eles aceitaram-na como um pessoal normal. Não sei se ela manteve muitas relações com os pais ou não, porque, entretanto, ela também teve alta. De vez em quando passava por lá.”

O psicólogo terminou, dizendo: “A prostituição não ocorre com mulheres normais, em termos de vivências. O problema é a afetividade, vidas muito más, presentes ou passadas, que desencadearam a prostituição.” 

Créditos fotografia de capa // Alexis Bahl no Pexels