Tempo

O teu tempo, Senhor, eu procuro

Por este Portugal fora, as paredes de inúmeros conventos abrigam milhares de pessoas que escolheram a calma garantida pelos ensinos de Deus para guiar as suas vidas.

Maria Laura Brotas, Mafalda Ferreira Costa, Bruno Alexandre dos Santos Pinto

Por este Portugal fora, as paredes de inúmeros conventos abrigam milhares de pessoas que escolheram De certa forma, estas pessoas acabam por seguir o salmo 27:8 do Velho Testamento, “A tua face, Senhor, Eu procuro”, e ir ao encontro do Senhor. O Salmo 27 acaba por ser uma oração com uma mensagem forte para quem busca pela proteção divina. Nas suas palavras, o melhor vai acontecer com base na fé de que o correto vai prevalecer à malícia. Por isto, é evocada a necessidade de confiar não só em si próprio como na força divina, colocando as adversidades nas mãos de Deus. Para que tudo isto aconteça é preciso entrar no caminho da fé para que possa existir essa bênção. Essa proteção que é desejada por tantos, vai também ao encontro daquilo que pessoas como a Irmã Anatália veem no caminho da reclusão.

Porquê a religião católica?

A nossa escolha acabou por recair na religião católica, uma vez que é a religião predominante em Portugal. Mesmo que desde 2001 até 2021 tenha tido uma diminuição de praticantes (84.1% para 80.2%), continua a ter uma presença muito expressiva quando comparada com as restantes fés. Analisamos os dados dos censos desde 1991 para percebermos a evolução das práticas religiosas no nosso país. Desta análise, decidimos dar ênfase às estatísticas dos protestantes (com os evangélicos a assumirem um grande destaque dentro deste grupo), que mostraram um aumento de fiéis significativo ao longo dos anos, sendo a segunda religião mais influente. Outro dado curioso foi a existência de um número cada vez maior de pessoas sem religião. Atingindo 14.1% em 2021, este valor quadruplicou nos últimos 30 anos.

Desta forma, decidimos ir até um Mosteiro perto da vila ribatejana do Couço e obter o ponto de vista pessoal de alguém que enveredou por este modo de vida.

A Família Monástica de Belém é constituída em grande maioria por mulheres e está presente em inúmeros cantos do mundo, nomeadamente na Europa e em alguns países das Américas.

Em Portugal, as Monjas de Belém vivem no Mosteiro de Nossa Senhora do Rosário, inaugurado em 2013. Localizado a 9 km da Vila do Couço em Coruche, este mosteiro situa-se no meio da natureza, sendo um local ideal para a prática das atividades litúrgicas e de reflexão. Este mosteiro é caracterizado por ser um mosteiro de reclusão, ou seja, as suas residentes permanecem dentro das quatros paredes da instituição, não tendo qualquer tipo de contacto com o exterior sem ser o mínimo indispensável.

Um olhar de primeira pessoa

Para se ter um sentimento mais real sobre o que é a vida consagrada e a sua relação com o tempo, seria necessário obter o testemunho de alguém que passasse os seus dias rodeado pelas paredes de um mosteiro. O ponto de vista em primeira pessoa é essencial para perceber a realidade do assunto, pela voz de alguém que viva essa realidade. Assim, o Mosteiro de Nossa Senhora do Rosário pareceu o indicado, dado ao seu contexto de reclusão e de distanciamento da vida citadina e apressada. Fomos até à instituição, situada a alguns quilómetros da Vila do Couço, distrito de Santarém, e fomos recebidos pela Irmã Anatália.

A Irmã Anatália: o seu caminho até à decisão

Anatália é o nome monástico de Ana Margarida. Quando se entra na vida monástica, há a possibilidade de se receber um novo nome como um símbolo desta nova vida que se começa. Este nome atribuído à Irmã significa “luz do amanhecer”, trazendo uma carga simbólica de leveza e esperançosa sobre o modo de vida que decidiu adotar.

A Irmã Anatália confessa que, antes, não sabia nada de mosteiros. O interesse não estava lá, desconhecia ordens religiosas… Essencialmente, não via o seu futuro a passar por este modo de vida, pois via a felicidade como um sentimento obtido com a formação de uma família. Ao refletir sobre a sua escolha, confessa que a sua decisão se deveu a um caminho que foi “amadurecendo”.

A partir de uma certa altura, a sua fé foi crescendo. Passou a integrar grupos de jovens católicos e sentiu que Deus lhe falava; que tinha sido Ele a criá-la. Tendo tido essa perceção, pensou se o projeto que Ele tinha para lhe oferecer seria o caminho a seguir. Isto chocaria com o seu conceito de felicidade e da sua ideia para o percurso de vida que queria adotar, mas, ao conhecer mais sobre a família monástica que agora integra e ao fazer retiros, a ideia de se juntar a este caminho foi ficando cada vez mais forte.

A sua decisão não se deu por estar de mal com a vida nem por nenhum desgosto de amor, dizendo que foi namorando e que sempre foi feliz. A Irmã conta que não deixou um mundo de coisas que não gostava ou de assuntos mal resolvidos: ela trabalhava, tinha uma carreira, gostava do que fazia, uma boa relação com a família e podia até vir a casar-se, mas algo mais forte e mais importante acendeu-se dentro de si. Sentia que estava a fugir da vontade que Deus tinha para si, referindo que, quando deixou de lutar contra esta decisão, recebeu uma paz interior enorme na sua vida.

Dá-se início à mudança

Talvez a parte mais difícil de todo este processo seja informar os pais sobre a decisão tomada. O medo de quebrar as suas expectativas para o seu percurso de vida às vezes sobrepõem-se ao nosso próprio medo de quebrar essas mesmas expectativas.

A Irmã Anatália conta que se lembra perfeitamente do dia em que lhes decidiu dar a conhecer a sua decisão. Lembra-se de que estava nervosa e que esperou pelo fim do almoço para o fazer. Os pais já sabiam desta sua procura pela vida monástica e acompanhavam os retiros que ela ia fazendo. Nessa altura, já tinha até feito um retiro de dois meses num mosteiro, experiência essa que tinha custado muito aos pais. Desta vez, a mudança seria decisiva, e esse facto foi difícil de interiorizar. Mas é esse caráter decisivo o exigido por esta vocação: a entrega completa a Deus. Aquilo que mais custou aos pais da Irmã foi, sem dúvida, o afastamento físico da filha.

Ao longo do tempo, Anatália sentiu que os pais foram aceitando e, atualmente, vão visitá-la várias vezes ao mosteiro. Conta ainda que, no dia em que fez os primeiros votos, o seu pai lhe disse que estava totalmente conformado com a decisão que tomara, pois via-lhe um sorriso que não mostrava há imenso tempo.

Mesmo com as reações inicialmente difíceis, a Irmã Anatália partiu para o seu novo caminho. Agarrou numa mochila com pouca coisa e foi, com destino a uma nova etapa na sua vida. Ao início, tinha a ideia de que seria uma mudança algo complexa, mas depois sentiu que foi tudo natural. Tinha 28 anos quando entrou nesta vida. Nessa altura, a ordem era ainda localizada em Sesimbra, aguardando autorização para a construção do Mosteiro. Nessa altura, ela e as restantes Irmãs ficavam numas casas dentro da quinta do benfeitor da comunidade, que queria ceder um terreno dentro da quinta para que a ordem pudesse aí construir o Mosteiro.

A Imprevisibilidade dos dias

Ao contrário daquilo que muitos de nós têm em mente, a vida monástica é muito organizada e preenchida com atividades litúrgicas. Tal como nos faz ver a Irmã Anatália, o que torna os dias imprevisíveis não é a monotonia da sua rotina, mas a intensidade com que os vive. Os dias da semana com um ritmo mais calmo são de terça a sexta-feira, com tempos e missas a horas certas. No que restar desse dia, rezam individualmente, nas suas celas, em três momentos de oração e têm ainda momentos de trabalho e de lazer, como caminhar ou ler. Ao sábado ensaiam os cânticos e reúnem-se para uma conversa sobre o Evangelho de domingo. Ao domingo fomentam as suas relações rezando e almoçando juntas. As segundas-feiras são dias de retiro.

“A intensidade com que se vive é que faz com que o tempo passe mais depressa ou mais devagar.”

Descrição detalhada das atividades que ocupam os dias no Mosteiro

Olhar para a vida num mosteiro como uma vida ligada a Deus faz com que viver o presente seja o ponto principal. Esta pode ser também uma das razões para que o tempo ganhe uma nova dimensão: a intensidade do dia-a-dia. “Quando se vive no instante presente, o tempo ganha uma intensidade muito grande”, reflete a irmã. Confidencia-nos que a segurança e a estabilidade que sente se devem a este ritmo rotineiro, que nunca é sinónimo de aborrecimento. Todo o seu tempo são horas de louvor. Vê os imprevistos que acabam por, positivamente, quebrar essa rotina, como surpresas que Deus envia. Explica-nos ainda que viver segundo o calendário litúrgico é também um exemplo dessa quebra de ritmo, onde as festas e os dias de santos dão sempre um brilho diferente aos seus dias.

Apesar de as pessoas pensarem que o tempo de um monge está “dividido por gavetas”, os momentos de louvor unificam as atividades desempenhadas no dia-a-dia. Assim, podemos verificar que a devoção a Deus é o ponto comum em que culminam todas as suas práticas.

O Novo Tempo

“O tempo ganha a cor do louvor.”

No seu outro tempo, sentia que nunca aproveitava o tempo que tinha, como se tudo passasse e nada permanecesse. Hoje, sente que, apesar de correr à mesma velocidade, o seu novo tempo é aproveitado de uma forma diferente, com mais qualidade. Procura viver sem recurso a um relógio, longe do tempo comum, preferindo viver com base no tempo da oração e do louvor.

A forma como vive o silêncio é também outra, e por essa razão tudo o que é desnecessário se transforma em ruído. Não veem televisão, apenas se mantêm informadas pelos jornais, quer através de uma espécie de jornal com informações recolhidas por um mosteiro da sua família monástica, quer através de assinaturas a jornais ou por aqueles que as visitam. Gostam de estar informadas, contudo não têm interesse no que é superficial, querendo saber apenas do essencial. Deixa bem claro que não estão nem se sentem presas, e que ali vivem de livre vontade. Explica-nos que mesmo que seja por escolha própria, só se comprometem a votos perpétuos ao fim de 10 anos, tendo todo o tempo e liberdade para pensar nessa escolha.

A Liberdade da vida monástica para a Irmã Anatália.

Por entre as brisas do silêncio

“Por ser um lugar isolado e afastado da agitação diária, a Irmã Anatália diz-nos que isso beneficia a oração e transmite a calma necessária”

Testemunho da Irmã Anatália sobre a localização e paisagem do Mosteiro)

Dois pontos: continuidade e recomeço

O tempo na vida monástica é claramente diferente daquele que nos é próximo. Com um foco para o presente, contraria a celeridade com que vivemos o hoje, pensando no amanhã. Vivem no silêncio e intensificam cada um dos seus dias aproveitando tudo o que a Vida (Deus) tem para lhes dar. Anatália não olha para a sua mudança de vida como um ponto e vírgula, mas sim como dois pontos. Não sente que houve um interregno, mas sim uma continuidade e um recomeço. Foi também esse um dos motivos para querer que o seu nome fosse um reflexo do seu renascimento.

Créditos das Fotografias e Gráfico