A Morte
Vida após morte
Sendo o único ser dotado de racionalidade, desde sempre que o Homem procurou uma resposta para a sua existência e para o seu fim.
Ana Barros, Aurora Raposo, Marta Caldeira, Natacha Cantarinhas
Vox-Pop: Existe vida após a morte?
Desde sempre temos conhecimento de relatos e imagens que retratam a perda, a dor, a angústia, a desintegração, a degeneração, mas também o fascínio, a sedução, a entrega e o descanso como as principais emoções e sentimentos relacionados com a morte. Apesar da visão paradoxal o Homem sempre temeu a morte, porém tentou relacionar-se com ela, o que justifica o aparecimento de cerimónias fúnebres. A esperança de que pudesse existir uma vida para além daquela que temos na Terra, de forma a trazer conforto aos que cá ficariam, foi o que fez crescer a crença de que a morte não seria o fim, mas sim uma continuação, ou mesmo um novo começo. O aparecimento de diversas civilizações fez com que a abordagem desta crença fosse diversificada devido às diferenças culturais entre sociedades.
O Antigo Egito foi uma das civilizações mais ricas no que toca à crença da vida após a morte. Aliás, mesmo em vida, as pessoas que assumiam altos cargos (faraós, vizires, sacerdotes e funcionários de grande importância) iam preparando e embelezando os seus túmulos de forma a atingirem a vida eterna. A sua opulência traduzia a dignidade e relevância que a pessoa em vida tinha tido. O sistema mortuário egípcio era bastante complexo e avançado tecnológica e intelectualmente: desde as mumificações, com procedimentos extremamente complexos, passando pelos mais variados tipos de objetos, vestes e peças para o moribundo levar para o “outro lado” que enchiam o túmulo, até à colocação do “Livro dos Mortos” no sarcófago, que serviria como um guia de forma a superar todas as provas necessárias para passar até este “outro lado”; como é o caso do balanceamento entre o seu coração e uma pena perante o Deus dos Mortos, Anúbis.
O pensamento filosófico foi um dos principais meios impulsionadores para que na Grécia Antiga se refletisse acerca da morte. Alguns acreditavam que tudo para ter um início teria que ter um fim; enquanto outros acreditavam que a morte seria só uma passagem para o desconhecido. Platão foi um dos primeiros filósofos a abordar a questão da morte e a defender a imortalidade da alma. Este afirma que morrer consiste na separação do corpo e da alma. Na Grécia Antiga acreditava-se que a alma seria um alento divino e que quando se desintegrasse do corpo continuaria a viver imortalmente junto dos deuses. O politeísmo grego estava diretamente associado à sua crença na vida após a morte. O conceito de submundo nasceu nesta época e era para onde iam todos os defuntos. Para chegar a este lugar, regido por Hades (deus do Submundo), os defuntos tinham de atravessar o rio Aqueronte. Porém, a passagem só era concretizada se estes carregassem consigo um óbolo (pequena moeda grega de baixo valor), que teria de servir como pagamento a Caronte – barqueiro – cuja figura era comparada a um génio infernal. Algumas almas ficavam a vaguear pelas margens do rio, enquanto outras iam para os Campos Elísios, um paraíso onde as “boas almas” repousavam dignamente após a morte.
Avançando no tempo, a Idade Média ficou marcada pela morte de milhões de pessoas na Europa devido à peste, à guerra e à fome. A partir desta nova realidade, a sociedade deparou-se com uma forte presença da morte e a sua conduta mudou diante da mesma. Muitas vezes aceitavam-na com tranquilidade. Ainda assim, o intenso contacto com a morte não impediu que esta fosse vista como um castigo de Deus para o Homem.
Hoje, vivemos numa sociedade onde se considera natural que as pessoas vivam longas vidas. Com a esperança média de vida a aumentar progressivamente, evita-se pensar na morte. Paulo Borges, professor do Departamento de Filosofia da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, afirma que “o mundo, a vida e a natureza não obedecem aos nossos princípios e valores morais e muito menos obedecem aos nossos desejos ou expectativas. Ter consciência disto é um passo fundamental para se viver bem. A sabedoria passa por aceitar a vida tal como ela é.” Não podemos controlar este mistério que é a vida, o que inclui a própria morte. Mas se a Morte é inevitável e inesperada, como arranjar um sentido para a Vida? Todos temos dúvidas sobre a morte e, principalmente, se existirá vida após a morte. Hoje em dia é mais difícil as pessoas aceitarem uma religião na sua dimensão mais doutrinal, mais dogmática ou mais autoritária, em que se diga: ou acreditas e és salvo e vais para o céu, ou não acreditas e vais para o inferno. As pessoas têm um espírito mais crítico e não se satisfazem com este tipo de mensagem. As pessoas querem descobrir por si próprias. Como tal, a diversidade de tradições espirituais que se encontra em Portugal é cada vez maior. Desde o budismo, passando pelo islamismo até ao espiritismo. O cristianismo, apesar de ainda ser a religião com maior número de crentes no país, não é a única. As crenças (ou até mesmo a falta delas) podem servir como um guia para arranjar o sentido da Vida que tanto se procura; ou até mesmo uma preparação para a Morte. Mas a questão permanece: será a Morte um fim ou apenas um início?
“Ser testemunha de Jeová é um modo de vida”
Felipe Pinto de 50 anos e Rebeca Pinto, sua filha, de 21 anos são testemunhas de Jeová e regem a sua vida segundo a palavra de Deus: “A bíblia contém vários princípios, mandamentos que nos ajudam a orientar e a viver a vida da forma como vivemos”.
Ao recitar uma das bases mais fortes da sua religião, Timóteo 3;16 na bíblia: “Toda a escritura é inspirada por deus e benéfica para ensinar, para repreender, para endireitar as coisas, para disciplinar em justiça” (na revista, colocar num quadradinho ao lado), Felipe explica que nesses mandamentos e princípios existem dois que são os principais da sua religião: “Amar a Deus sobre todas as coisas e amar o teu próximo como amas a ti mesmo”. Para este pai, “Deus é perfeito”, mas nós seres humanos somos imperfeitos, de uma forma ou de outra, vamos falhar; no entanto, “podemos esforçarmo-nos para cumprir os princípios de Deus”.
De forma a seguir estes princípios de Deus, Rebeca e Felipe consideram que um dos passos mais importantes é pregar as boas novas a outras pessoas, transmitindo o que a bíblia diz em relação ao futuro e à “esperança que as pessoas podem ter em relação a um mundo melhor”.
Neste sentido, para este pai e filha, “ser testemunha de Jeová é um modo de vida” e uma forma de estar na vida. É algo muito profundo que os faz sentir à parte da sociedade: “As pessoas não ligam ao que Deus diz através da bíblia, mas connosco já é diferente, porque procuramos fazer a vontade de Deus, aderindo ao que a bíblia diz e isso marca a diferença e o afastamento”.
Assim, Rebeca e Felipe vivem segundo as bases orientadoras da sua religião, afirmando que a “bíblia nunca traz nada em nosso prejuízo; muito pelo contrário, é tudo para nosso bem”.
A morte introduzida pelo pecado
No ponto de vista de Filipe e Rebeca, a “morte é a nossa maior inimiga” e consideram ser aquilo que pode trazer mais dor às pessoas. De forma a entender o conceito de morte na perspetiva desta religião, Filipe explica que teve origem no pecado de Adão e Eva – “o pecado produz a morte que é uma condenação de Deus”.
Ao serem questionados sobre se acreditavam numa vida após a morte, ambos negam a sua existência, respeitando os princípios da sua religião. Rebeca segue com um exemplo para explicar a sua perspetiva: “Tu tens uma vela, tu sopras e para onde vai a chama? A morte é totalmente igual – não vais para lado nenhum”.
Ao recitar Coríntios capítulo;23: “Como o último inimigo a morte vai reduzir-se a nada” (na revista, colocar num quadradinho ao lado), Felipe Pinto explica que enquanto os vivos sentem amor, ódio e emoção, os mortos não sentem nada e a sua condição é zero. Assim, para Filipe é simples responder afirmando: “Para mim é tão simples quanto isto, se do pó vieste ao pó voltarás”.
A esperança na ressurreição
Felipe Pinto explica que para as testemunhas de Jeová existe uma esperança apelidada de “ressurreição”, o que afirma ser totalmente diferente da vida após a morte
(Génesis 2:7; Ezequiel 18:4) Assim, a ressurreição não é a união da alma com o corpo, mas sim a recriação da própria pessoa. (na revista, colocar num quadradinho ao lado) Ao citar a Bíblia, Filipe afirma que a ressurreição é a possibilidade de a pessoa poder voltar a ressurgir, exatamente com o mesmo código genético e com as mesmas características: “A pessoa pode voltar a existir, exatamente como ela é”.
Para ambos, Deus tem a capacidade fazer voltar à vida aqueles que já morreram e as ressurreições que são mencionadas na bíblia é para mencionar o que ele vai fazer no futuro.
“Alegrem-se com os que se alegrem e chorem com os que choram” Romanos 12:15
Apesar de haver uma esperança no ressurgimento do indivíduo, Filipe e Rebeca consideram que a perda “momentânea” daquela pessoa traz uma enorme dor. Assim os funerais significam uma oportunidade de mostrar empatia e consolo pelas pessoas – “se eles se alegram nós também nos alegramos, mas se eles choram nós também choramos”.
Para além disso, segundo Felipe, as testemunhas de Jeová contrabalançam a dor e a perda nos funerais com consolo, flores e um discurso fúnebre direcionado para as pessoas que vão assistir ao velório e que não são testemunhas de Jeová nem conhecem a esperança bíblica. O discurso é encorajador referindo que “a morte não é o fim e que o futuro é ressuscitar as pessoas”.
Neste sentido, para estas testemunhas de Jeová os funerais são um momento triste, mas é algo passageiro, pois acreditam que vai existir uma altura em que poderão ver as pessoas que amam novamente.
As transfusões de sangue – linhas vermelhas da religião
Tendo em conta que é um assunto muito complicado e profundo, Rebeca revela que para as testemunhas de Jeová a não transfusão de sangue é, na verdade, uma “ordem”.
O valor simbólico da palavra “sangue” está por detrás desta ordem. Para Felipe e Rebeca, o sangue simboliza vida e a “vida ninguém pode dar ou tirar”, pois “apenas o criador tem esse direito”.
Em caso de vida ou de morte, Felipe acredita que essa é uma decisão pessoal de cada crente e de cada pessoa com Deus. Cada testemunha de Jeová terá de ter esse peso de responsabilidade. “Imagine que uma pessoa num caso extremo passa a linha vermelha e aceita receber o sangue, claramente que é uma transgressão contra a vontade de Deus e a pessoa vai ter que arcar com as consequências”, revela Felipe.
Para Rebeca e Felipe isto é um assunto muito sério; é uma linha vermelha que ninguém quer passar, retomando o conceito de ressurreição: “Se Deus diz isto, mesmo que percamos a vida, perdemo-la debaixo do criador e ainda existe uma esperança”. Com a perspetiva numa vida futura, Felipe e Rebeca revelam que o criador vai lembrar-se daqueles que procurarem fazer o melhor serviço: “se isso significar morrer por obediência ao criador, assim o farei.”
“Eu decidi acreditar em menos um do que os outros”
Matthew Toy, de nacionalidade inglesa, tem 45 anos. Mudou-se há 14 para Portugal e criou uma empresa de desportos radicais. Escolheu o ateísmo – a ausência de crença na existência de divindades – devido às suas viagens à volta do mundo, que fizeram mudar a sua forma de levar a vida, através do contacto com diferentes culturas e religiões: “Eu decidi acreditar em menos um do que os outros”, afirma.
Quando Matthew era criança ouvia sempre a história de que quando alguém morre vai para um sítio melhor – o céu. Segundo Matthew, esta típica história “é apenas um conforto”.
Após alguns anos foi mudando o seu pensamento e começou a acreditar que “o que [tem] é a vida, só isso.” – “Quando eu nasci eu não me lembrava de nada antes de ter nascido, porque eu não existia. Quando eu morrer vai ser o mesmo”.
Começou a inclinar-se para o ateísmo aos 18 anos, pois sentiu que não havia mais nada além da vida em terra: “Foram várias coisas que me fizeram pensar assim. Existe uma diferença entre nós e os animais: nós sabemos que vamos morrer e eles não, mas há uma coisa pior, que é não saber quando. É por isso que as pessoas precisam de um conforto. A mim eu prefiro que me deem a verdade. Prefiro sofrer, mas saber a verdade”. A sua viagem até à Índia foi o ponto de viragem de Matthew para esta linha de pensamento e forma de viver a vida. Sentiu o ambiente de um grande espiritualismo e politeísta, uma vez que adoravam vários deuses e não apenas um. Apesar de ser diferente do ambiente a que estava acostumado em Inglaterra, sentiu que “ia dar tudo ao mesmo”: “se tu tens um problema na tua família, não há problema que eles têm um Deus para isso”. Desta forma, Matthew chama às igrejas “templos de lágrimas”. Matthew Toy destaca ainda que na sua viagem à Índia reparou que “quanto mais pobre de dinheiro uma pessoa é, mais fé tem e mais rica de espírito é”.
Ser ateu num país predominantemente católico
Matthew entende que ser ateu em Portugal é algo incomum e destaca um aspecto marcante na cultura portuguesa: “Uma coisa importante culturalmente para os portugueses é que para ser padrinho ou madrinha é preciso o batismo. Temos de ser religiosos”, afirma.
Ainda refere que sente, de alguma forma, “injustiça ao viver num país assim, porque também há pessoas que dizem: tu não podes casar numa igreja sem ter uma religião, tu não podes ter um funeral sem isso”.
Constata que não consegue acreditar num Deus com tantas regras – “quando um recémnascido não batizado falece, este não pode ir para o cemitério.”
Em relação a Portugal, realça um ponto positivo em relação à prática da religião católica:
“sinto que as pessoas não são extremamente católicas como são em Espanha ou Itália.”
A vida após a morte no ateísmo
Numa linha de pensamento ateísta morre-se 3 vezes: a primeira morte é a morte corporal; a segunda morte é a morte mental; a terceira morte é quando “pela última vez, alguém utilizar o teu nome em lembrança, seja após 1 ano, seja após 100 anos”.
Segundo o ateu, a comunidade ateia faz um outro tipo de funeral: “É uma celebração da vida da pessoa que morre: existe música e fotos e é proibido chorar”. O código de roupa é a roupa do dia-a-dia, algo simples. O objetivo da cerimónia é recordar a pessoa e sorrir com as memórias criadas; toda a celebração está no ente falecido e não num Deus.
Matthew Toy afirma que, segundo o seu pensamento, a vida após a morte “é mentira e uma história”. Explica que “quando nós morremos todo o nosso cérebro vai morrer. Não fica a existir nada. É como quando desligamos um telemóvel: não se ouve nada”. No entanto, neste funeral os ateus vão para um jardim e plantam uma árvore em memória da pessoa. Depois, podem visitar a árvore e “neste sentido, a pessoa continua a viver”.
Os princípios de um ateu
Matthew entende que quando só se tem uma vida todos os pequenos e grandes momentos são mais valorizados: “Nós estamos aqui só uma vez e é preciso lembrarmo-nos disso sempre. Isso é o mais importante”. Ainda salienta que, se não fôssemos levados por outras histórias, o mundo social seria um mundo em que a sociedade tratar-se-ia com mais empatia e respeito. Matthew, desta forma, encontra a sua forma de viver através do carpe diem/ seize the day, que significa aproveitar e viver o dia como se fosse o último.
Matthew Toy acredita que o ser humano tem os princípios morais dentro dele mesmo e que não é preciso uma igreja para dizer “o que é bom ou mau. Todos sabemos isso”, constata.
Além deste seu ponto de vista, ainda refere e salienta que não existem os “pecados mortais” como na religião católica e que “se existe um pecado cometido, é porque não fomos o melhor que podíamos ter sido”. Na comunidade ateísta há sempre perdão. Matthew exemplifica-o com a história de um ladrão de um carro: “O pecado não está no facto de ter roubado o carro, está no facto de, como não tem respeito para com ele mesmo, não tem respeito pelos outros”.
“Um princípio que entra em nós e que vai crescendo”
Natural de Lisboa, Aliyah é uma estudante universitária de 19 anos que segue o islamismo. Desde sempre que viveu segundo os princípios orientadores da sua religião: a fé, o jejum no mês de Ramadão, a paz e o Zakat (ajudar os mais necessitados). Apesar de em certas alturas da sua vida não ter seguido de forma condensada estes ideais foi tentando sempre que os mesmos estivessem presentes em cada passo. Ao longo da sua vida sente que foi evoluindo e que, agora, estes ideais estão muito mais incutidos na sua pessoa: “É um princípio que entra em nós e que vai crescendo”.
A jovem muçulmana mostra sempre o seu amor e respeito pelo próximo mesmo que desconheça quem é esse “próximo”. Pensa sempre em ajudar, pois “nunca sabemos o que o outro está a passar, porque nós achamos que as pessoas estão bem por fora, mas por dentro, dentro das suas casas, podem estar a precisar de muita ajuda. Ajudar o próximo é sempre importante”. Sabe que a comunidade islâmica nem sempre é vista com “bons olhos”, mas que “por muito mais que exista uma imagem negativa devido a situações menos boas,” acaba por tentar espalhar a paz, a felicidade e a calma que são pontos importantes na vida de hoje em dia.
O Alcorão
A palavra Alcorão (livro sagrado do Islão) deriva do verbo árabe que significa “declamar” ou “recitar”. Alcorão é, portanto, uma “recitação” ou algo que deve ser recitado. O Alcorão tem vários versículos, que abordam assuntos quotidianos e comuns a todos os seres humanos. A morte é um deles. No Alcorão existe referência à morte quando esta acontece e também a referência à vida após a morte.
Segundo Aliyah, o Alcorão aborda a morte no sentido “de que toda a vida humana acabará por ter um fim.” A vida na Terra é passageira, temporária e vamos um dia aproveitar tudo com Deus; encontrarmo-nos com Deus, pois todos acabamos por vir de Deus e a Deus regressaremos. Em relação à vida após a morte, a jovem refere que “como um dia iremos ressuscitar e iremos passar por um dia do julgamento” salienta que vamos voltar a ter uma outra sensação da vida, que vamos voltar a ressuscitar.
Os funerais dentro da Religião
O funeral passa por diversas etapas; é algo complexo. A morte é um tema sensível à vista do “cidadão comum” e esta cerimónia acaba por envolver todos os pontos sensíveis atribuídos à efemeridade da vida.
Assim que se dá o óbito, o corpo é levado para a Mesquita (Masjid) – local de culto dos seguidores da fé islâmica – onde existe uma zona onde se dá banho ao corpo e se acaba por fazer e tratar de tudo. É realizado o Ghusl ao Mayat (ato de dar o banho ao falecido). Os familiares podem participar, mas só os do mesmo género: se o falecido for um homem só os homens é que podem participar; se o falecido for uma mulher só as mulheres é que podem participar. Esta interdição deve-se “principalmente pelas zonas íntimas de cada um, pelos cabelos, por todos esses fatores que são importantes na religião”, afirma Aliyah Saiyad. Após a realização do banho, os falecidos são tapados por panos simples de cor branca: “Essa cor branca é para dar uma cor de simplicidade, de modéstia, porque o ser humano quando vem à terra vem sem nada e é suposto irmos embora sem nada. Nós não vestimos as nossas melhores roupas, não usamos o melhor penteado no cabelo…”, enfatiza a jovem. Depois deste processo, existe uma sala presente na Mesquita destinada à reza, onde o corpo não fica por mais de 24 horas. Antes de o moribundo ser levado para o cemitério, existe uma oração fúnebre – Salatul Janazah, em que se rezam as orações mais conhecidas, como é o caso da Ayatul Kursi. Toda a Comunidade Islâmica reza para o falecido e o corpo é, então, levado para o cemitério. Aí, “o corpo sai do caixão e fica em contacto com a terra”. Este contacto direto da pele sob a terra é para defender a posição de que “viemos sem nada, vamos sem nada”, assim como quando falecemos, “acabamos por ir só nós e a nossa alma e corpo”.
Normalmente, os homens são os únicos a deslocarem-se até ao cemitério para o enterro. As mulheres não costumam acompanhar, porque “estão mais sentidas por vezes”. O corpo de um muçulmano não pode ser cremado – todo o processo de cremação não está presente na religião muçulmana.
Explica ainda que, após um certo número de dias, os entes queridos reúnem-se e rezam pelo falecido. A cerimónia serve para “acabar por limpar tudo o que ainda possa existir de negativo e dar bênção ao falecido para que este esteja bem”, afirma a jovem.
Aliyah Saiyad sente que, em relação à morte, Portugal vê a comunidade muçulmana com “bons olhos”. “Não acho que seja visto com maus olhos até porque não existe nada de mal. Estamos a fazer um bem ao corpo de uma pessoa”, argumenta. Afirma também que o funeral é algo universal, que deve ser respeitado e não descriminalizado ou posto de parte: “é algo que sinto que tem de ser aceite”.
Perspetiva pessoal
A jovem muçulmana via a morte com outros olhos quando era mais nova. Mas as fontes de entretenimento e comunicação, como a televisão, alargaram a sua visão. Para ela, as pessoas só tinham de viver e não conseguia encarar a morte como um processo (natural) da vida e de alguma forma foi sempre negando a morte:” ao longo da minha vida, vi pessoas próximas de mim a falecer e isso mudou logo a minha perspetiva de vida. Entendi que tudo o que tem vida, acaba por ter morte. A morte faz parte de nós e é algo que temos de encarar”. Realça que a morte é algo de que não podemos ter medo.
Aliyah relata uma conversa que marcou a sua forma de pensar em relação à vida e à morte, com a sua tia e percebeu que: “Devia viver todos os meus dias como o meu último dia, ou seja, aproveitar a vida ao máximo. E é isso que tento levar e até agora está a ser positivo”. Aliyah Saiyad, a jovem muçulmana, acredita também que existe vida após a morte. Desde sempre que teve essa afirmação presente consigo e assim a pretende manter no decorrer da sua vida.
“Custa-nos muito aceitar que somos na verdade únicos e absolutamente irrepetíveis”
Natural do Barreiro, o Padre Francisco Mendes licenciou-se na Universidade Nova de Lisboa, em Comunicação Social e Teologia, tirando também um mestrado em História Medieval. Sempre soube que tinha vocação para servir a comunidade, pois só a trabalhar por um bem maior se sentiria realizado e feliz. Sendo a comunicação parte fulcral da sua vida, apesar de numa determinada altura ter sentido o dever de se juntar a Cristo, continuou a trabalhar na área na qual se licenciou, tendo sido, em 2001, nomeado Diretor do Jornal de Notícias de Setúbal. Tornando-se Padre e entregando-se à Igreja Católica, o entrevistado não pode constituir família. Porém, quando questionado se gostava de ter filhos responde, com um sorriso, que já tem muitos e que a adoção é sempre um caminho possível.
Base da doutrina Católica – a ressurreição
Ao contrário daquilo que muitos pensam, segundo a doutrina católica, o corpo não fica e a alma vai. O Padre Francisco explica que “a alma é o princípio imortal do ser humano” e que quando uma pessoa morre, mais tarde Cristo virá salvar o todo; “Deus não vem só para salvar almas. O corpo é importante também. O corpo faz parte de nós. É algo que não é propriamente um saco onde a alma vive. O corpo somos nós”. Apesar de ser visto como um todo, não se pode assumir que o corpo é salvo da mesma forma que a alma por ser matéria biodegradável: “Acreditamos na ressurreição da carne. Não é da forma que idealizamos. É algo completamente transformado que Deus conhece. É um mistério”. O entrevistado reconhece que existe um grande enigma por não se saber de que forma a carne volta a viver. Sabe que a Igreja Católica não tem uma doutrina com a resposta concreta por ainda não ter sido possível alguém o explicar. Simplesmente acredita que existe ressurreição porque foi isso que Cristo nos disse: “Sabemos que acontecerá [ressurreição]. Isso sim é a doutrina!”
Acreditar em algo que não é tangível e visível
O Padre Francisco deixa claro que não faz ninguém acreditar e que apenas propõe uma doutrina que tem como certa a fé: “Se acreditarmos que Jesus Cristo ressuscitou e se acreditarmos naquilo que ele nos diz, então sabemos que a doutrina é verdadeira e, simplesmente, temos fé nisso”. O mesmo propõe que se acredite em Deus, já que há tanta dimensão da nossa vida acerca da qual não temos conhecimento, mas que somos convidados a aceitar porque faz sentido na nossa cabeça; “Se Jesus Cristo ressuscitou e nos propôs um caminho de tal forma, acredito e vou seguindo. Porque é que isso será mais irracional do que acreditar num ecrã cheio de equações matemáticas!?”. Assim, dá o seu consentimento da racionalidade a algo que não domina diretamente e afirma que não vê dificuldade em propor essa doutrina, reconhecendo que não a pode simplesmente impor. Na idade média pintavam-se as pessoas a sair do túmulo tal e qual como tinham entrado; “todas direitinhas”. Hoje, duvida-se disso: “O Miguel Ângelo pintou o juízo final na capela Sistina daquela maneira fantástica. Nós podemos dizer: Vai ser assim? Se calhar não. Dizer que o juízo final, a ressurreição, que a vida depois da morte é aquilo que está na pintura do Miguel Ângelo… Bom! É abusar um pouco! Aquilo é uma forma linda como se entende, mas não deixa de ser apenas uma forma.” Segundo o Padre, cada um vive de forma diferente estas “dimensões incompreendidas e não objetiváveis”, tendo apenas a crença e a fé de que um dia Deus virá salvar cada um de nós.
O mito romântico da alma
“O que está no livro do apocalipse e nos evangelhos é que no fim, quando estas coisas acontecerem no tempo e no modo que Ele quiser, nós havemos de viver com Deus para sempre. Aqueles que o tiverem merecido.” O Padre Francisco afirma que o modo como essa seleção é feita está na ordem do mistério e, num tom brincalhão, questiona se Deus será tão misericordioso que até desculpou Hitler de todo o mal que ele causou em vida: “Não sei, mas estou cá desconfiado que não.” Interroga-se também sobre a veracidade do Olimpo: “Não sabemos se é um mundo à parte, se é um mundo transformado, se é um mundo que evoluiu a partir daquele que conhecemos”. O cenário criado por Hollywood dos zombies e das “alminhas perdidas” pelo mundo é aquele que está intrínseco na visão da sociedade sobre uma possível vida após a morte. Porém, é uma forma de representação romanceada e dramatizada com base na doutrina greco-romana e que ficou como substrato cultural, não correspondendo àquilo que, verdadeiramente, é a doutrina Cristã; “Numa mundividência Cristã não faz sentido [acreditar em espíritos]”.
A reencarnação – metempsicose
Quando confrontado com a crença na reencarnação, o Padre Francisco começa por defender que as pessoas têm muita dificuldade em aceitar que somos singulares: “Custa-nos muito aceitar que somos na verdade únicos e absolutamente irrepetíveis. Custa-nos muito acreditar na originalidade das coisas.” Como explica, a metempsicose (transmigração de almas para diferentes corpos) é pura mitologia grega. Os gregos tinham a perspetiva de que as almas passavam por um período de olvido e de felicidade e que depois voltavam a encarnar num espírito humano, sendo para eles uma tristeza completa já que “o mundo físico era uma desgraça, uma degradação e o que era importante era estar no mundo das ideias, da glória e das contemplações”. Como referido anteriormente, o substrato da filosofia e cultura grega ainda está muito presente na sociedade e são cada vez mais recorrentes as vezes em que ouvimos histórias acerca de pessoas que têm conhecimento de “encarnações” em vidas passadas. O entrevistado justifica a sua descrença na reencarnação pois assim estaríamos a assumir que a nossa caminhada pela vida, quer seja boa ou má, iria sempre ter o mesmo desfecho: “Se somos livres, verdadeiramente, não podemos estar aprisionados a um ciclo”. O Padre brinca ainda, fazendo alusão a um autor romano – Tertuliano – “Resta saber é como é que se explica o aumento populacional! Porque se não, a população era sempre exatamente a mesma”. Para a doutrina Cristã não seríamos verdadeiramente livres nas nossas escolhas se estivéssemos sujeitos a um ciclo; “A vida começa num determinado momento e para nós [cristãos] não tem fim. Queremos que ela seja junto de Deus e esperamos que seja toda a gente. Gostaríamos muito que fosse toda a gente”.
Atividades Paranormais
O Padre Francisco admite que realmente as atividades paranormais acontecem, mas não sabe dar uma resposta a esses acontecimentos pois não é capaz de “traduzir isso numa linguagem mensurável”. Como afirma, “são dimensões que não se explicam e que não dominamos, mas que são reais. A ciência explica aquilo que consegue explicar e medir. A dimensão da vivência pessoal não é traduzível de qualquer maneira”. Acredita também que numa determinada fase da vida, já tenha acontecido a qualquer um sentir que algo está iminente de acontecer, apoiando a sua teoria na “hipersensibilização” da alma.
“Na nossa religião acreditamos que todos nós somos espíritos”
Natural do Rio de Janeiro, chegou a Portugal em 2019. A jovem refere que a família sempre lhe deu espaço para ser livre nas suas decisões, principalmente, no que toca a assuntos importantes como a escolha de uma religião. Foi batizada muito nova, mas só aos 14 anos conseguiu entrar na catequese de forma a ser praticante do Catolicismo. Apesar de respeitar esta religião, existiam algumas coisas com as quais não se identificava; “certos dogmas” e “pontos acerca dos quais discordava” o que foi originando uma, cada vez maior, perda de interesse. Graças à mãe, que participava ativamente no centro espírita da região onde viviam, começou a sentir mais curiosidade acerca do espiritismo: “Assisti a algumas palestras, aprendi mais com ela [mãe], estudei em casa…. Foi então que me tornei espírita porque decidi que era isso que fazia mais sentido para mim”. Desta forma, Carolina passou a ajudar a mãe no processo de evangelização das crianças no centro. Apesar de, em 2019, ter vindo para Portugal estudar, não colocou o espiritismo de lado e decidiu ingressar no Centro Espírita de Perdão e Caridade em Alcântara, cuja oferta passa por diversos cursos, desde os mais básicos aos mais complexos.
Bases do espiritismo
Carolina afirma que Allan Kardec (1804-1869) – pai do espiritismo – foi o primeiro a transpor para o papel a capacidade de se comunicar com espíritos. Após falar e debater com pessoas que também tinham essa habilidade, escreveu as suas cinco obras mais conhecidas e fundou a religião espírita. De forma simples, a jovem explicita que o espiritismo está assente numa “doutrina com bases religiosas, filosóficas e científicas”, ou seja, acredita em Jesus Cristo e em Deus e que, na prática, se baseia em fazer o bem e a caridade. “Na nossa religião acreditamos que todos nós somos espíritos. A nossa verdadeira casa é o plano espiritual (o outro lado). Estamos aqui encarnados (o espírito assume o corpo físico) com o objetivo de, justamente, nos aprimorarmos e evoluirmos enquanto espírito, pela via do amor, da caridade e do bem”.
A reencarnação
O espiritismo considera dois planos: o plano mundano, onde os espíritos vivem encarnados num corpo físico e se tentam aprimorar, e o plano espiritual, para onde vão após a morte e onde delineiam um plano para encarnar novamente. No plano mundano, os espíritos vão adquirir virtudes e aprender a trabalhar as suas qualidades e defeitos de modo a extrair das situações a melhor lição: “É uma forma de tentar caminhar no sentido da perfeição. Cada encarnação é uma chance de adquirir novas virtudes, livrar-se de vícios e prazeres mundanos e do materialismo”.
O livre arbítrio é muito importante para o espiritismo já que todas as barreiras que no quotidiano são superadas, ditam a evolução do espírito. Carolina admite que quer o meio social quer a “individualidade” (tudo o que o espírito foi aprendendo ao longo das encarnações) são preponderantes nas provas que enfrenta ao longo da vida. Acrescenta ainda que, muitas vezes as nossas decisões e pensamentos são influenciados pelos espíritos que estão à nossa volta. “Depende se atraímos bons ou maus! Eles nunca vão fazer mal. Eles não têm aquele poder Hollywood de te puxar a perna. Isso não existe. Eles podem, simplesmente, influenciar o livre-arbítrio.”
A reencarnação do espírito dá-se durante o ato sexual dos pais e esta escolha não é feita com base na classe social, religião e etnia dos mesmos. Quando esta ocorre o espírito esquece tudo o que foi na vida passada pois isso não o ajudaria a tomar decisões de forma imparcial. Carolina refere que “no plano espiritual o espírito pode participar mais ou menos no seu planeamento” (direcionar o rumo de vida), dependendo do seu adiantamento (se é mais aprimorado e se se encontra mais perto da perfeição enquanto espírito). Muitas vezes, são os espíritos superiores (espíritos que se encontram num patamar de quase perfeição) que ajudam e colocam determinado espírito numa família, época e local. A jovem declara ainda que este “planeamento [no mundo espiritual] funciona para ajudar, mas não significa que tenha o objetivo de ser fácil. É muito pessoal e particular. Se o espírito precisa de nascer numa condição mais humilde para aprender o conceito de humildade porque, por exemplo, numa vida passada foi muito rico, mesquinha e egoísta, agora precisaria de passar muitas dificuldades para aprender também o que isso é”.
O medo da morte e o Outro Lado
Devido ao ciclo em que assentam a sua crença, para os espíritas a morte “não é objeto de tabu”, já que a consideram uma libertação de um corpo físico. Carolina explica que, no outro lado, o espírito consolida tudo que aprendeu em terra e, se tiver uma certa elevação e conhecimento, tenta que a sua passagem seja realizada da melhor forma. “Não é só deste lado que se dá uma aprendizagem.” No outro, também se estuda muito de forma a que se fique pronto para a próxima encarnação e, assim sucessivamente, até que o espírito se consiga aprimorar e tornar-se superior – a figura de elevação, do bem e da luz.
Carolina nota ainda que o tempo que cada espírito permanece no outro lado a si o diz respeito, já que lá este não é contado da mesma forma que na Terra.
A missão dos espíritos
Dando o exemplo de Jesus, a jovem explica que “no outro lado, numa reunião de espíritos superiores, pode-se determinar que um espírito que já seja mais avançado reencarne numa certa condição, não para passar por provas, mas com uma missão.” Transpondo para uma realidade atual, Carolina dá o exemplo da morte prematura de uma criança que, de um ponto de vista mais “humano”, é terrível, mas que, do ponto de vista “espírita”, pode ser reconhecida como uma aprendizagem para os seus próximos.
As experiências transcendentes
Carolina afirma que todos nós somos uma espécie de médiuns (capacidade de comunicar com espíritos) mas existem pessoas que têm a mediunidade ostensiva, que conseguem ativamente comunicar com eles (ouvir, sentir, ver).
Quando confrontada com a pergunta se já teve alguma experiência transcendente, a jovem responde afirmativamente com base em energias e não em algo tangível ou visual: “É algo que não é explicável porque eu literalmente senti”. Carolina conta a história que viveu no centro espírita do Brasil onde sempre que entrava numa pequena sala recheada de bijuterias, peças, lenços que eram doados ao centro por familiares de falecidos confessa que se arrepiava. A mesma reconhece que existem espíritos, no outro lado, que não se conseguem desligar das coisas materiais e justifica isso com a estranha sensação que sentia sempre que lá entrava.
“[É importante] vivermos com a consciência de que a coisa mais certa que podemos ter na vida é a morte”
Paulo Borges, além de lecionar várias cadeiras relacionadas com Filosofia, Religiões e o Pensamento Oriental, tanto na Faculdade de Letras como na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, desenvolve um trabalho importante em várias instituições, nomeadamente a Associação Círculo do entre-ser, no sentido da compaixão e do mindfullness seguindo práticas meditativas e os pensamentos do Budismo. “Desde 1983 que formalmente tento praticar um caminho budista, nomeadamente tibetano. Mas naturalmente nem sempre pensei como penso agora.” Paulo Borges nasceu numa família em que a sua mãe, apesar de não praticante, tinha uma consciência cristã e o seu pai era interessado em espiritualidade; então considera-se um herdeiro da sua sensibilidade para todo o tipo de espiritualidade, meditação e yoga. “Em casa, desde criança que tinha o meu pai a transmitir-me esses ensinamentos.” Fez um curso de Filosofia e durante o curso não era uma pessoa religiosa nem tinha qualquer interesse espiritual. “Quando terminei o curso havia uma necessidade de procurar o sentido da vida mais nas tradições espirituais da humanidade e também tinha necessidades emotivas que me levaram a seguir um caminho de yoga que levou à meditação, a visitar um centro budista tibetano, a descobrir a filosofia budista tibetana e identifiquei-me com ela.” Descobriu ao mesmo tempo as grandes tradições espirituais da humanidade e tem se interessado por todas. Reconhece que estas tradições espirituais são mal conhecidas pela população comum, incluindo o cristianismo e a sua dimensão mais meditativa. O professor defende também que “se estudarmos a fundo cada tradição espiritual encontramos algo muito semelhante ao que encontramos em todas as outras.”
As diferenças na filosofia da religião relativamente ao tema da Morte
Paulo Borges defende que as diferenças que existem estão fundamentalmente numa divisão que existe entre as religiões teístas – aceitam a existência de um Deus criador, transcendente, todo poderoso, que é o responsável pela nossa vida e pela nossa morte. Nessa perspetiva vai depender da relação com essa divindade e com os outros, nomeadamente no aspeto do final da vida, se vamos para o paraíso ou não. Se cometermos ações nocivas, contra os preceitos de Deus, após a morte arriscamo-nos ter uma experiência de infelicidade, o Inferno. “Embora estas noções na teologia judaica ou cristã já estejam a ser ultrapassadas, ainda há de certo modo a ideia de que se há um deus criador, ele vai nos compensar em vida ou após a morte pelo modo como nós vivemos no presente.” Há outras religiões que não concebem desta forma a figura de Deus, como o hinduísmo que considera Deus a natureza primordial de todos os seres e está, portanto, presente em todos. Noutras tradições religiosas, não se fala propriamente de Deus, pensando no taoísmo e budismo, mas sim de uma natureza mais profunda dentro de cada um de nós. Nessas religiões mais orientais, considera-se que o que nos vai acontecer na vida e na experiência da morte e pós-morte depende do que estamos a pensar, a fazer e a dizer a cada momento; denominado na Índia de “Lei do Karma”, lei da ação e reação, da causa e do efeito. “Tudo é ação desde palavras, pensamentos, ações físicas e nós podemos cometer ações positivas quando as nossas ações visam o bem comum, a paz e a felicidade geral ou podemos cometer ações negativas quando deixamos que a nossa mente seja dominada pela possessividade, pelo egoísmo, cólera, raiva, ciúme, inveja, que têm consequências negativas não só na vida, mas também na morte e no momento após a morte.” Considera-se no fundo que o modo como vivemos, como morremos e o que nos vai acontecer após a morte não depende tanto do juízo de um Deus exterior a nós, mas sim das ações que estamos a praticar a cada momento. Depende, portanto, do que passa na nossa mente e do que se passará quando estivermos livres das condições da vida física. Em algumas religiões considera-se que a responsabilidade, em última instância, é de um Deus transcendente a nós. Noutras considera-se que a responsabilidade é do modo como vivemos e, portanto, morremos em função das nossas ações.
A morte como um despertar de consciência
O professor Paulo Borges refere a importância de “vivermos com a consciência de que a coisa mais certa que podemos ter na vida é a morte”, pois assim não deixamos compulsivamente para depois aquilo a que mais aspiramos na vida. “Se eu tiver consciência de que a qualquer momento pode ser o meu último momento de vida, naturalmente que aprecio mais a própria vida, as pessoas que estão na minha vida, familiares, entre outros, porque estou consciente de que qualquer momento pode ser o último, não só para mim, mas também para as pessoas de quem eu gosto.”
Através de uma perspetiva do budismo tibetano, o professor Paulo Borges explica como funciona o processo da morte e do momento após a morte.
Do ponto de vista tibetano, a nossa vida e morte são influenciadas pelas nossas propensões karmicas, ou seja, as tendências dominantes em termos de ações mentais, verbais e físicas. Se usarmos de forma positiva a mente, a palavra e a ação física, temos tendência a viver mais em paz e a ter uma visão mais positiva sobre nós e sobre os outros, refletindo-se isso no momento de aproximação da morte. Por outro lado, se formos dominados pela negatividade, viveremos controlados pela possessividade, pelo apego, pela raiva, pela cólera, pela inveja, pelo ciúme, o que também terá influência no momento da morte. O ponto de vista tibetano afirma que quando chegarmos ao momento da morte vamos passar por uma dissolução progressiva dos elementos subtis que nos constituem: terra, água, fogo, ar. Isto relaciona-se com movimentos energéticos denominados de chacras, que são pontos de energia psicofísica ao longo da nossa coluna vertebral. Quando o último elemento se dissolve na consciência, deixamos, progressivamente, de pensar e ter emoções. A meditação pode ajudar a tornar o processo mais lento, a ter menos medo e ter consciência do que está a acontecer. Nesta última fase, quando os níveis mais profundos da consciência deixam de estar condicionados pelo funcionamento do cérebro, embora clinicamente haja uma morte física, diz-se que a pessoa está ainda mais consciente e consegue ler telepaticamente os pensamentos das pessoas à sua volta. Desta maneira, é extremamente necessário que as pessoas que rodeiam o moribundo tenham pensamentos positivos e que, dentro do possível, meditem, façam orações, mantras e não demonstrem, de forma ostensiva, a sua dor. Isto ajuda a criar uma atmosfera espiritual que auxilia a pessoa a partir. Há um determinado momento em que a consciência vai deixar de ter perceção do mundo exterior e entrar numa experiência de luz. Quando morremos, temos oportunidade de regressar à nossa natureza profunda e primordial que é a luz, um espaço aberto, sem forma. O budismo defende que nós somos fundamentalmente luz; luz que se manifesta num corpo físico em vida, materializada e condensada. Na morte não há nada mais que aconteça a não ser o regresso da luz à grande luz de onde tudo surge. “No budismo não há que temer o momento da morte. É, pelo contrário, uma oportunidade de atingirmos o despertar espiritual.”
O renascimento nas tradições budistas
Do ponto de vista budista, contrariamente à visão cristã, não há só uma vida onde se permanece no céu ou no inferno para sempre. Há sim muitas vidas, resultantes do modo como vamos vivendo cada uma delas. As mesmas podem mudar de forma, seja animal, divina, humana. O professor Paulo Borges explica que pode se entender o céu, o purgatório e o inferno como várias possibilidades de experiência que a mente tem após a morte física: a mente pode viver experiências mais pacíficas e mais felizes, próximo da ideia de céu; pode viver experiências ora felizes ora infelizes, próximo da ideia do purgatório; ou pode estar num caso de grande sofrimento, próximo da noção de inferno. Este processo dá-se quando a pessoa não consegue ligar-se à luz e “fica mais condicionada por aquilo que fez na vida anterior.” Essas experiências podem ser materializações da positividade ou negatividade da nossa mente. O professor Paulo Borges refere a importância de ter conhecimentos do budismo tibetano para não ter medo e perceber que não há separação entre si e aquilo que está a percecionar.
De forma reduzida, a pessoa que está no bardo (o momento entre a morte e a próxima vida) começa a ter a perceção dos lugares e formas possíveis onde pode nascer. Há muitas possibilidades em aberto que dependem do karma de cada mente, sendo possível sentir essas tendências tanto em vida, como em consciência.
No budismo acredita-se que tudo o que nos acontece na vida presente, depende sempre do que foi feito em vidas anteriores. Se numa vida anterior tivermos sido pessoas que protegeram a vida dos outros, isso gera um karma positivo e faz com que possamos ter uma vida mais longa, saudável e protegida de perigos. Porém, se tivermos feito mal a outros seres, pode haver a tendência para passarmos por situações difíceis, desde doenças, acidentes, mortes precoces. “No fundo tudo o que nos acontece é consequência das nossas ações anteriores.”
Metamorfose da alma
De um ponto de vista budista, “é importante ter-se consciência de que não há a ideia de que a alma é sempre a mesma e que vai passando de corpo em corpo, de existência em existência.” No budismo fala-se mais de mente como um processo: “nós somos uma metamorfose”. Não há vida e depois há morte; há uma vida e uma morte em cada instante pois tudo no nosso corpo muda como é o caso das células. Ao longo desta constante metamorfose, podemos assumir diferentes formas. Do ponto de vista budista, todos os animais têm consciência e a natureza de Buda em si. Nessa perspetiva, não há seres superiores e seres inferiores. Dentro das várias possibilidades de renascimento, pode-se renascer em planos divinos, semi-divinos, infernais, humanos, animais, espíritos vários etc. Em última instância, a natureza essencial de todos os seres é a mesma: a consciência – “é como se houvesse muitas ondas no oceano, mas todas elas fossem feitas de água”. A natureza de Buda, no budismo tibetano e noutras tradições budistas, é comum a todos os seres; é a essência de todos os seres. Exteriormente são diversos, múltiplos, mas interiormente todos têm a mesma essência, todos são manifestações da natureza de Buda.
Em termos relativos, o budismo considera que um ser que nasce num plano humano, tem mais capacidade de evoluir do que uma consciência que esteja sob forma de um inseto ou rato. Os animais estão mais condicionados pelos seus instintos e vivem com o objeto de se reproduzir e sobreviver. Temos vários níveis cerebrais que nos dão diferentes direções, nomeadamente o córtex frontal que nos permite distanciar-nos face aos nossos instintos e emoções, permite pensar, refletir e temos, nesse sentido, vantagens relativas. Concluindo, Paulo Borges explica que aqueles que neste momento vivem sob a forma animal, poderão um dia aceder a um nascimento humano e atingir o despertar espiritual coletivo.