Dependência

“Vou e seja o que Deus quiser”

Três homens da mesma família emigraram para Portugal à procura de uma vida mais digna. Os caminhos conturbados para fugir à pobreza reuniram dois irmãos e um primo num país que lhes dá melhores condições de vida.

Constança Vilela, João Santos, Madalena Paredes, Marta Carvalho, Ricardo Gonçalves

Se as oito da noite representam a hora de jantar para muitas famílias, para Rafael Lucas, de 30 anos, não é mais do que a hora de saída da oficina. Pediu dez minutos para que pudesse mudar de roupa para a entrevista. No Brasil, mudava-se para ninguém o “olhar de lado”. Agora, fá-lo por uma “questão de educação”.

Por muito que trabalhasse, o ordenado mínimo que recebia forçava-o a contar trocos. Dos R$1000 (cerca de 161€) mensais, gastava R$600 (97€) para pagar a renda e outros R$385 (62€) para pensão da filha. A lista de supermercado era cuidadosamente planeada – R$40 (6,5€) por 1 kg de carne, outros tantos para 5kg de arroz – e muitas vezes, o essencial tinha de ficar de fora.

A situação de aflição foi uma realidade na sua vida desde que tem memória. Sendo os custos elevados, era costume a despensa estar vazia. A pobreza e a humildade da família espelham a distinção a nível social que se faz sentir no Brasil: “o rico é rico e o pobre é pobre”. Uma das memórias de infância que guarda é uma ida à mercearia com o pai. “Lembro-me até hoje, como se fosse agora, de ele chorar porque não tinha 25 centavos para comprar um iogurte. Não quero que a minha filha passe por isso nunca”, relembra.

O aumento do nível de insegurança alimentar, que não é apenas motivado pela pandemia, leva a que muitas famílias brasileiras vivam nas mesmas situações precárias. Segundo a socióloga brasileira Letícia Bartholo, especialista em políticas públicas e gestão governamental, há uma “desestruturação das políticas públicas viradas aos mais vulneráveis”. Os critérios para ser considerado pobre já não refletem a realidade do país, e, como tal, é recorrente alguém que vive com dificuldades financeiras não conseguir beneficiar dos auxílios do Estado. Era nesta situação que Rafael se encontrava: apesar de, muitas vezes, comer apenas uma vez por dia, não era pobre o suficiente.

Por mais que emigrar significasse afastar-se da sua filha de 6 anos, continuar a viver no Brasil era entregar as suas vidas à pobreza. “Do que é que eu vou viver? Nada, eu vou passar é fome”.

Fubá – Rafael descreve o que comia em tempos de aflição

Por um punhado de dólares

Despediu-se da filha e entrou no camião, em direção à Cidade do México. Naquele momento, percebeu que esta seria a última memória da menina com o pai, por um tempo que se adivinhava longo. Se olhasse para trás, arriscava-se a perder a força e ficar. Mas era por ela, lembrava-se. “Por ela, tudo”.

O plano estava traçado, e revelava-se simples: atravessar a fronteira até aos Estados Unidos da América, onde se encontraria com a sua tia e primos. Pediu dez mil dólares a um agiota, para pagar aos “coiotes” que asseguravam a passagem. Um bilhete de ida, sem regresso. Esperou cerca de duas semanas na Cidade do México, até que o dia chegou. “O bicho pega quando sais de lá e vais fazer a travessia”, confessa.

Os “coiotes”, que supostamente o acompanhariam na travessia, apanharam-no e largaram-no – a ele e a tantos outros – numa rua sem saída, apenas com um portão que dava acesso ao deserto. Serraram uma parte do portão para que todos pudessem passar e deixaram-nos à sua mercê. “A partir daqui a travessia é sempre de noite, porque não tens onde te esconder se vier a polícia” explica. Realça que fazer a mesma trajetória num só dia é a receita certa para serem apanhados por quem patrulha a zona. De forma a poderem avançar sem levantar suspeitas, escondiam-se em casas estrategicamente colocadas ao longo do percurso. Eram barracas sem quaisquer tipos de condições, sem móveis e apenas com uns trapos para dormir. Lá permaneciam durante o dia, enquanto esperavam que os “coiotes” aparecessem para dar o sinal que podiam avançar. Sempre sem aviso. “Era uma doideira, cheirava coca na mesa à nossa frente e saía doidão. Uma vez, o “coiote” ficou três dias sem aparecer. Havia mães com filhos, pessoas com cerca de 50, 60 anos. Deixou-nos sem comida, e os meninos choravam sem comer nada. Só havia água, e mesmo assim só numas garrafas que já tinham lodo por dentro. Se bebesses aquilo morrias.”

No deserto dormiam mal, com frio e sempre com um olho aberto. Rafael conta como ele e os seus recém-conhecidos ajudavam uma senhora e o seu filho, levando-o ao colo para que ninguém ficasse para trás. Uns dias antes tinham feito a travessia durante o dia – a única vez que o fizeram – e nada os podia preparar para o que viram. Corpos humanos, carcaças de cães, roupa abandonada. “São aquelas pessoas que não aguentam e ficam ali. Os «coiotes» largam-te e vais morrendo ali, vais feder, vais virar um esqueleto. Que se foda”. O receio de não chegar ao fim da travessia era inevitável, mas teve sempre confiança de que ia conseguir. Estava muito em jogo.

Chegados finalmente a Houston, permaneceram numa casa à espera do camião que os transportaria para o destino final. O grupo que foi antes dele tinha sido bem- sucedido, pelo que, ultrapassada a parte perigosa da viagem, Rafael acreditava que finalmente encontraria a família que aguardava por ele. No dia D, esconderam-se no fundo falso de um camião que transportava carnes. Mas o verdadeiro pesadelo começava agora. Parado na estrada pelas autoridades, o camionista não aguentou a pressão e “abriu o bico”. Rafael foi detido, e permaneceu encarcerado nos dois meses que se seguiram. “A minha mãe pensou que eu tinha morrido, o meu pai, toda a minha família”. Quando finalmente teve a possibilidade de entrar em contato com alguém, teve que pesar as suas opções. Sabia que se voltasse a Minas Gerais corria o risco de ser assassinado, por não ter maneira de pagar a dívida que havia contraído com o agiota. Foi então que decidiu ligar e pedir ajuda a Rodolfo, o seu irmão mais velho, emigrado em Portugal.

Descrição do telefonema entre Rafael e o seu irmão Rodolfo

Sozinho em Portugal: à mercê da fé

“O início não é fácil para ninguém. A pessoa também tem de ter sorte, além de tudo”, explica Rodolfo que, com apenas 19 anos, teve de se adaptar a um país completamente desconhecido. Embora se encontrasse a meio da licenciatura de contabilidade [no Brasil], a descrença de que iria encontrar boas oportunidades de emprego levou-o a tomar a decisão de emigrar, decisão essa que diz ter sido repentina – sem um “verdadeiro projeto” por trás da ideia, largou tudo e mudou-se para o país irmão em 2006. Quando contou ao pai que se queria mudar para Portugal, a reação não foi a esperada. O facto de a família ter vivido em sacrifício para que Rodolfo conseguisse estudar e “ter uma vida melhor que a deles” fez com que o pai não apoiasse a decisão. “Ele até jogou na minha cara que eu deitei o dinheiro e a vida dele para o lixo”, recorda.

Motivado pelos salários mais vantajosos em terras portuguesas, viajou até Madrid pois “era mais fácil para entrar em Portugal”. Sozinho e num país novo, a sua adaptação esteve longe de ser fácil. Nunca sentiu preconceito, mas acusou a cultura diferente. Com lágrimas e desespero à mistura, a vontade de embarcar no primeiro voo de regresso ao Brasil era muita: “Quando eu cheguei não sabia o que é que era preciso para poder fazer os primeiros documentos, nem sabia que existia isso de chegar e ser ilegal”. Embora houvesse empregos disponíveis para quem os procurasse, depressa percebeu que precisava de se legalizar para ter acesso a melhores oportunidades de trabalho. Tratou sozinho da documentação necessária e descreve todo o processo como sendo um “verdadeiro terror” para um imigrante; uma experiência a não repetir. Apesar de todas as contrariedades, viu o seu esforço e sacrifício recompensados nos anos que se seguiram. A sua resiliência permitiu-lhe construir o estilo de vida que idealizou quando entrou no avião – de chegar sem nada a ter dois cabeleireiros e duas casas arrendadas. Instalado e adaptado ao país que o acolheu, não hesitou em ajudar o seu irmão quando este lhe ligou a pedir ajuda.

Detido pelas autoridades americanas e prestes a ser deportado, Rafael precisava desesperadamente de auxílio para escapar ao destino que o esperava em Minas Gerais.

Confrontado e surpreendido com a situação delicada do seu irmão, Rodolfo instruiu-o a ligar-lhe novamente quando aterrasse em São Paulo, local para onde Rafael seria deportado. Sem maneira de lhe transferir dinheiro diretamente, alugou um quarto para pernoitar e enviou dinheiro para a conta de uma funcionária do hotel, que, posteriormente, o entregava ao Rafael. Foi também através do hotel que conseguiu entregar os bilhetes de avião e os documentos necessários para que Rafael conseguisse entrar em Portugal. De São Paulo para Lisboa, com escala em Belo Horizonte, Rafael aterrou finalmente no aeroporto Humberto Delgado.

Um mês, cinco ordenados

Ainda que tenha contado com a ajuda do irmão, nos primeiros tempos em Portugal, Rafael acabou por enfrentar alguns sobressaltos. No seu primeiro emprego, recebeu 200€ a menos do que aquilo que tinha sido acordado. Por ter dívidas para abater no Brasil, deixou que o episódio passasse em branco. “Quer esse dinheiro?” perguntou- lhe o patrão. “Se não quiser, procure o seu direito”. Rafael viu-se forçado a aceitar, sob o risco de não receber nada. “Que direito é que eu tenho aqui? Nenhum. Tinha acabado de chegar, vou procurar quem? Vou fazer o quê?”, explica.

Contudo, em conversa, relembra com gratidão o seu patrão atual, António. Para além de lhe dar um emprego na sua oficina de serralharia, ajudou-o também a mobilar o seu apartamento – desde a cama onde dorme até ao micro-ondas onde aquece os restos de almoço que leva para casa. Rafael resume sucintamente: “Deus no céu e António na Terra”.

Como Rafael, também o seu primo Lucas Ferreira abandonou o país para dar um rumo diferente à sua vida. Em 2021, a situação pandémica motivou-o a seguir os passos dos seus primos, aos 28 anos. O seu primeiro dia em Portugal “foi estranho”: a cultura, a forma de pensar, a comida e uma melhor qualidade de vida foram as principais diferenças que sentiu.Com apenas um mês de trabalho, Lucas conseguiu juntar R$5000 (805€), “o equivalente a cinco ordenados mínimos no Brasil”. Segundo o próprio, em Portugal “as horas são preciosas e o trabalho é intenso. Lá, certos dias nem havia serviço”.

Lucas, à direita, trabalha com o seu primo desde 2021. Fotógrafo: Ricardo Gonçalves

No Brasil, algo tão simples como passear é acompanhado da preocupação de estar constantemente a “olhar para a frente e para trás, senão vem um cara e faz-te a folha”. Nem as escolas representam um espaço seguro e livre de violência. Lucas, que também tem uma filha, explica a aflição que sentia quando a menina frequentava o ensino público: “Você manda o filho para a escola e está sempre preocupado se ele vai chegar a casa, se vai chegar lá algum maluco e fazer alguma coisa. Não tem segurança com nada”.

O esforço compensa o sacrifício

A razão que os leva a sair do Brasil é também aquilo que mais lhes custa deixar para trás. Mesmo sem ver a filha há dois anos, Rafael mantém a consciência tranquila com a sua decisão. Neste lado do oceano, acredita que lhe consegue dar o equivalente a “uma vida de filha de médico no Brasil”. Se enquanto solteiro “dava para viver”, a partir do momento em que a família passou a depender de Rafael, sair do país tornou-se necessário.

Impactos da distância entre pai e filha

Os pais de Rafael já sabiam que era inevitável e por isso, embora preocupados, apoiaram a decisão do jovem. “Quando o meu irmão emigrou é que os dois sentiram essa saída, porque foi o primeiro filho”, conta Rafael. Desde a vinda de Rodolfo, a tios e primos que foram para os Estados Unidos da América, os nomes de Rafael e de Lucas são só a continuação da longa lista de familiares que tiveram de emigrar para fugir à pobreza do Brasil. “Deixar filha, pai, mãe, toda a vida sempre ali perto, é complicado. É triste. Mas tem de tomar rumo, tem que decidir o que fazer da vida”, desabafa Lucas.

Na agenda não se marca data de reencontro, mas marca-se lugar. “A minha vontade é trazer a minha filha e a minha esposa para morarem cá comigo”, confessa Lucas. Por saber que não consegue fazer uma previsão rigorosa de quando isso acontecerá, deixa os planos de lado e independentemente do que aconteça, “é bola para a frente”.