Sonho
Escavar o sonho
No século XX, durante o período do Estado Novo, as dificuldades sentidas pelos operários da mina de Aljustrel eram imensas. Não se explorava só zinco, chumbo e cobre nestas minas, exploração essa que continua até aos dias de hoje. Explorava-se também os trabalhadores. À custa da saúde e da vida de muitos mineiros, por não oferecerem as condições necessárias para uma vida digna, os administradores da mina enriqueciam enquanto deixavam a classe trabalhadora na miséria. O sonho de uma vida digna era constante e só se tornaria real com a chegada do 25 de abril de 1974. Por Francisco Gaié
Francisco Gaié
A história da exploração mineira no local hoje conhecido por Aljustrel é já milenar. Há provas de presença fenícia na zona, mas são os romanos responsáveis pela primeira grande exploração mineira contínua. Com a criação da localidade romana de Vipasca criam as fundações para o que é conhecido hoje como Aljustrel.
Já no período contemporâneo, na viragem para o século XX em 1898, após um hiato na indústria mineira em Aljustrel, empresários belgas decidiram investir na retoma da exploração das pirites com a constituição da Societé Anonyme Belge des Mines d’Aljustrel.
A “formidável luta dos mineiros”
As condições de vida dos trabalhadores do concelho de Aljustrel eram árduas. O trabalho era precário e instável pois flutuava muito entre a agricultura nos latifúndios e a mina. A população deslocava-se para onde fosse oferecido trabalho conforme a necessidade: não existam contratos fixos e estava à descrição dos empregadores contratar ou despedir pessoal consoante a exigência do momento.
Em relação aos mineiros, estavam expostos a grandes variações de temperatura e chuva no interior das galerias. Trabalhavam inicialmente dez horas por dia, sendo que mais tarde foi reduzida a jornada para nove e depois para oito horas. Recebiam apenas por cada empreitada. Tinham uma pausa de 30 minutos para a refeição, que, para quem trabalhava no subsolo, era tomada debaixo de terra.
Foi por descontentamento de estarem sujeitos a estas condições que de 3 de outubro de 1922 até 21 de janeiro de 1923 se dá o primeiro grande passo na luta e resistência dos mineiros,que ficou apelidado como “a formidável luta dos mineiros” pelo jornal A Batalha. Surge, nestes anos, uma reivindicação de aumentos salariais, iguais e fixos por parte dos mineiros, que recebiam em média 3 escudos por dia? mês?. Foram quatro meses de ânimos exaltados marcados pela repressão policial, pela detenção do Secretário-Geral da CGT – Confederação Geral do Trabalho, mas também por ondas de solidariedade vindas do resto do país. Trabalhadores agrícolas, tal como mulheres que se ocupavam da apanha da azeitona e operários de outras indústrias, organizaram greves de solidariedade para com os mineiros de Aljustrel.No fim os mineiros, apesar de terem conseguido aumentos salariais, saem derrotados. Deu-se o reforço da repressão por parte da GNR, que desfilava nas ruas da vila para tentar afastar novas possibilidades de movimentos grevistas e que, após o golpe de Estado, em 1926, encerra por definitivo a era do “sindicalismo livre”. No entanto, até hoje, não deixa de ser o mais marcante período grevista da mina da Aljustrel.
É este o grande primeiro exemplo do sonho de uma vida digna em Aljustrel e que se acentuou ainda mais no regime do Estado Novo. Neste período e até aos dias de hoje o nome da mina mudou e os seus acionistas partiram e chegaram mais do que uma vez, mas o sonho nunca se moveu.
Quando o pão salvava vidas
É neste período do Estado Novo que nasceu Francisco Silva, antigo serralheiro na mina de Aljustrel e personagem principal da nossa história.
Terminado o ensino escolar obrigatório até à quarta classe, Francisco foi à procura de melhores condições para si e para a sua família. Principiou a sua vida laboral aos dez anos numa sapataria. E ainda antes de entrar para a mina, como o seu pai e o seu avô tinham feito antes, aos 14 anos passou também pela forja e pela reparação de espingardas. Todos esses trabalhos sem receber um escudo, mas que se mostraram valiosos para a empresa mineira.
Na mina começou a receber nove escudos por dia que os entregava todas as semanas, sem exceção à sua mãe. Era esta a regra da educação na altura para poder ajudar em casa. “Uma casa de filhos como a do meu pai”, como Francisco expõe, passava por imensas dificuldades, sendo a principal delas a alimentação. Apesar de nunca ter passado fome, a comida não abundava e o pão era o salva-vidas na sua casa, como na casa de tantos outros mineiros da vila.
O seu pai foi vítima de silicose, tal como foram tantos outros mineiros no início do século XX . Não chegou a receber a indemnização que lhe tinha sido prometida.
Francisco lembra-se de que o trabalho, apesar de não ser forçado, era contínuo e sem espaço para pequenas pausas, pois a ameaça de repressão por parte dos superiores hierárquicos era constante. “Antes do 25 de abril aquilo que o chefe dizia era sagrado”, recorda, mostrando que no regime salazarista não havia abertura de diálogo entre os operários e o patronato, quer fosse para sugestões, quer fosse para reclamar melhorias.
“Não podíamos fazer nada, nem abrir a boca nem nada. Não podíamos dizer assim: ‘Eu não vou porque o trabalho ‘tá ruim’, ou ‘’Tá a cair’, ou ‘’Tá tudo a estalar’ (…) Morreram muitos assim, morreram muitos. (…) ‘Não vais tu, vai outro que tu estás despedido’ e para não se ser despedido sujeitava-se a tudo” – passagem de Joaquim Godinho Peixoto sobre a repressão sentida nas minas.
“Nas minas de Aljustrel morreram muitos mineiros”. É assim que começa o hino dos mineiros de Aljustrel e esta realidade não é alheia a Francisco. Desprovidos de condições de segurança foram muitas as pessoas que perderam a vida no trabalho. Tem como mais marcante memória a morte de um companheiro à sua frente. Uma máquina que necessitava de reparações caiu em cima do seu amigo e sufocou-o. A essa morte juntaram-se a de outros mineiros. O perigo de vida era uma sombra constante quando se trabalhava à revelia de condições dignas.
Apesar do regime repressivo, os trabalhadores das minas continuaram a exigir melhores condições de vida, o que foi especialmente visível na década de 60. Fartos do clima repressivo e do aumento do custo de vida, vários mineiros, apoiados pelo trabalho político clandestino do Partido Comunista Português, exigiram melhores condições salariais, através do Acordo Coletivo de Trabalho, prometido e nunca entregue, e mais proteção no trabalho. No entanto esta ação resultou no despedimento de 12 trabalhadores por “ação na provocação e incitamento à paralisação de trabalho”. Em solidariedade com a prisão injusta, os restantes mineiros entraram em grave para exercer pressão junto à entidade empregadora para que os presos pudessem ser libertados. Desta greve saíram 120 detidos e 14 foram levados a julgamento.
Uma nova paralisação foi preparada em 1962 e a PIDE prendeu os incitadores à greve. Houve indignação nas ruas de Aljustrel face às detenções, mas que foi rapidamente reprimida pela GNR. Dois mortos. António Adanjo e Francisco Madeira perderam as suas vidas a lutar pela liberdade e pelas condições de vida dos trabalhadores da mina.
Os cravos trouxeram luz ao subsolo
No entanto com a chegada do 25 de abril de 1974 e o fim da ditadura as necessidades dos mineiros, apesar de paulatinamente, foram respondidas.
Nesta data Francisco Silva estava na guerra? em Angola, , e era responsável por fazer a aproximação entre as forças angolanas do MPLA, da FNLA e da UNITA e as forças portuguesas para a transição de poder.
Quando regressou a Portugal, e novamente à mina de Aljustrel, deparou-se com as novidades da Revolução dos Cravos. Os trabalhadores tinham liberdade para finalmente se dirigirem aos empregadores, mesmo que estes últimos fossem resistentes à ideia, e exigirem melhorias nas condições de trabalho. A esta liberdade aliaram-se novamente os sindicatos o que se traduziu num aumento exponencial nos salários dos mineiros e na obrigatoriedade em fornecer os funcionários com equipamento protetor: capacete, óculos, botas de biqueira de aço, máscaras e protetores auriculares.
O risco da exploração mineira não desapareceu, tal seria impossível pela própria natureza da profissão. A prova disso são os acidentes e as mortes que até hoje acontecem mesmo com legislação que protege os trabalhadores. O 25 de abril trouxe a sensibilização necessária para a segurança no trabalho
É no período do PREC – Processo Revolucionário em Curso – que Francisco se lembra de haver “um companheirismo muito grande” e que estavam “todos unidos (…) a remar sempre para o mesmo lado” e que foi graças a isso que conseguiram conquistar muitas regalias. Uma das mais importantes para o antigo mineiro e sindicalista foi a da contratação coletiva: “os salários eram negociados com os patrões e os sindicatos para beneficiar os trabalhadores todos”.
Esta época é marcada também pela transformação de imóveis dos administradores da mina em lugares com utilidade para a população aljustrelense, tal como é o caso de uma horta de “área generosa” que passou a ser um jardim público e de uma vivenda transformada num lar de terceira idade. As redes de saneamento básico, o abastecimento público de águas e a integração de mais serviços de saúde também foram implementados nas décadas de 70 e 80.
O teto torna a cair
Estas conquistas feitas após o 25 de abril foram desfeitas anos mais tarde, menciona Francisco Silva. A contratação coletiva foi uma das vítimas em seu entender, sendo que ficou novamente e somente nas mãos dos chefes da mina decidir quem era aumentado e em que percentagem, sem espaço para discutir com os sindicatos. Para o antigo trabalhador, a fragmentação dos sindicatos foi uma das razões, assim como a moderação do caminho político que Portugal seguiu.
Em 1993 surge uma grande crise na indústria mineira em Aljustrel. José Godinho, antigo presidente da Câmara Municipal de Aljustrel, diz que “quando se vivia na expectativa de se dar um salto progressivo aquilo que se verificou foi precisamente o contrário”. Houve uma paralisação da mina quando se implementou o PAIPA – Projeto de Aproveitamento Integral das Pirites Alentejanas. Instalou-se uma lavaria industrial para que se pudesse extrair o minério do solo e tratar os concentrados da pirite (zinco, chumbo e cobre) e destiná-lo a mais usos que não a transformação da pirite em ácido sulfúrico para produzir fertilizantes, à semelhança da mina de Neves-Corvo, em Castro Verde.
Esse projeto revelou ser um fracasso por diferenças na construção da lavaria industrial face ao que era prática reiterada nas minas com esse plano já concretizado e também pela escassa presença de cobre nas pirites de Aljustrel, que era o concentrado mais cobiçado.
Sem conseguir atingir os lucros com que se tinha sonhado, a ameaça do encerramento da mina foi real e causou despedimentos e lay-offs dos trabalhadores, chegando mesmo ao encerramento da mina.
“Não houve vontade política dos vários governos para solucionar a viabilização da mina e dos postos de trabalho” e é só em 2005 que a crise se resolve definitivamente com a reabertura da mina, após ter sido adquirida por capitais canadianos.
Foi graças à luta da autarquia, dos sindicatos e da população que a paralisação da mina não foi mais prolongada, declara José Godinho.
Após uma vida árdua a trabalhar nas minas e vindo de uma família de mineiros (avô, pai e filho), Francisco Silva só sente mágoa de uma coisa: da palavra mineiro e o seu peso histórico na vila se estarem a perder. Sente isso nas gerações mais novas que olham para a profissão com algum desprezo por ser associada a uma classe pobre e pouco instruída. “Antigamente qualquer pessoa que trabalhasse na mina era mineiro e hoje o nome mineiro, parece-me, já nem sequer é falado na mina”.
“E eu pergunto aos economistas políticos, aos moralistas, se já calcularam o número de indivíduos que é forçoso condenar à miséria, ao trabalho desproporcionado, à desmoralização, à infância, à ignorância crapulosa, à desgraça invencível, à penúria absoluta, para produzir um rico?” – Almeida Garret.
Bibliografia
“Trabalho, Identidade e Memórias em Aljustrel – Levávamos a foice logo p’ra mina” Inês Fonseca 2007
“Aljustrel: 100 anos do fundo à superfície” Edição: Comissão de Aljustrelenses 2022
Arquivo Nacional Torre do Tombo; Fundo: Arquivo da PIDE-DGS, PC 369/60 (4º vol.)
“Viagens na Minha Terra” Almeida Garret 1846