Sonho

Sonho à Lupa

A palavra sonhar tem apenas cinco letras, mas é considerada o motor de arranque para grandes sucessos. Pode reconhecer-se nela um porto seguro, onde cada um de nós constrói a sua realidade, ou a casa da nossa avó, que com enorme carinho nos fazia tantas vezes “sonhos” deliciosos e recheados de açúcar. Definir este vocábulo não é fácil. A lírica que o enlaça não permite que qualquer olhar o consiga apreciar na sua verdadeira essência. O quadro geralmente pinta-se sob os artifícios que o Homem criou e, talvez só à lupa se possam perceber os meandros por detrás deste fenómeno. Será a ciência capaz de o desvendar?

Constança Santos, Laura Ferreira, Alice Antunes, Duarte Botelho Ferreira

“De sonhar ninguém se cansa, porque sonhar é esquecer, e esquecer não pesa e é um sono sem sonhos em que estamos despertos.”, Fernando Pessoa

É quase intuitiva a associação que fazemos entre o sono e o sonho. À posteriori, compreendemos que são duas ações distintas mas que ocorrem em simultâneo. “Só é possível sonhar enquanto dormimos.” – esta parece uma premissa que qualquer um de nós diria com convicção. Este artigo pretende desconstruir a simbologia associada ao plano onírico e compreender a fisiologia do sonho.

O sono

No meio científico o sonho permanece ainda um processo enigmático; no entanto, conhecem-se os mecanismos que constituem o sono. O sono resulta da ação de uma “rede de neurónios” que está presente no nosso cérebro. Essa rede é constituída por células nervosas, que se distinguem como neurónios ativadores, que ativam o córtex cerebral de modo a nos mantermos acordados, e neurónios que têm exatamente a função contrária: a de adormecermos. Assim, as interações nas redes neuronais cerebrais são responsáveis pelo começo e pelo  final do sono.

Existem dois mecanismos que se definem como “motivadores do sono”, ou seja, que estão encarregados de nos adormecer. A eles, dá-se o nome de “ritmo biológico” e “pressão de sono”.

O hipotálamo é conhecido por ser o nosso relógio biológico. Esta analogia provém da capacidade que esta região do nosso cérebro tem de nos informar de quando devemos estar acordados ou a dormir.  O hipotálamo regula a produção de melatonina, que é uma hormona fundamental para o sono, mediante a presença ou a ausência de luz solar. Verifica-se, deste modo, uma espécie de alinhamento entre esta componente cerebral e o ciclo da luz. A produção de melatonina é máxima no início da noite (o que favorece o sono) e progressivamente mais reduzida consoante a luz do dia vai surgindo. 

O hipotálamo é ainda um “mensageiro” para outras regiões cerebrais, como o tronco cerebral, que ao receber os seus sinais ativa outras zonas, como o córtex cerebral, levando à libertação de neurotransmissores que nos mantêm acordados ou que nos induzem ao sono.

À partida, podia acreditar-se que o hipotálamo seria o único responsável pelo “adormecer”. Contudo, dormimos também pela existência de um mecanismo homeostático, intitulado “pressão do sono”. Este recurso de equilíbrio orgânico revela a necessidade que o indivíduo tem de dormir.

De manhã, o nível desta “pressão” é praticamente zero, no entanto, com o progredir do dia, vai aumentando, atingindo o seu valor máximo à noite, altura em que precisamos de dormir. Podemos caracterizar a pressão do sono como cíclica, já que assim que adormecemos os seus valores voltam a reduzir.

“Quando dormimos uma sesta, a meio do dia, que ronde os trinta minutos, a pressão do sono diminui drasticamente nesse momento, e depois já não temos tempo para voltar aos valores mais elevados que nos levam a adormecer à noite.”, afirma  o neurocirurgião Rúben Cardoso. Outro fenómeno que pode ocorrer é o micro sono. Muitas vezes os micro sonos acontecem após uma noite mal dormida, mas há outras razões que os podem causar. Os micro sonos correspondem ao intervalo de tempo em que adormecemos involuntariamente, durante um período muito breve (menos de 3 segundos) sem que nos apercebamos ou que o possamos controlar. As consequências destes hiatos de inconsciência podem ser fatais, já que conduzem muitas vezes a acidentes de viação.

O sonho

Compreendido o que é o sono e em que fase deste ocorre o sonho, consideramos relevante passar agora à definição do que é o sonho.

“Se olharmos para as definições de sonho, podemos imaginar o sonho como uma grande autoestrada para o nosso subconsciente. Todavia, numa tentativa de o tentarmos objetivar e simplificar, podemos dizer de uma forma mais simplista que o sonho é um conjunto de pensamentos que vamos tendo durante o sono. O sonho é uma das experiências psicológicas mais incríveis que temos, e ele ocorre todas as noites O sonho permite-nos mostrar que o nosso cérebro, quando está desligado do ambiente exterior, é capaz de criar pequenos universos. E isso é uma experiência que considero pseudo-consciente fantástica.”, explica Rúben Cardoso, neurocirurgião no Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra.

A neurociência caracteriza-se por estudar e analisar as particularidades fisiológicas do sistema nervoso.  Para os neurocientistas, os sonhos têm objetivos funcionais para o cérebro. 

Apesar de a ciência estar em constante evolução, neste momento, ainda não é possível justificar com exatidão o motivo pelo qual sonhamos. Na realidade existem apenas hipóteses que a ciência aceita como plausíveis; preparar o cérebro para situações de risco, fortalecer a memória, esquecer pontos irrelevantes, manter o cérebro ativo e manter a saúde dos neurotransmissores em dia são algumas das respostas mais populares na ciência. 

Como já referimos, enquanto dormimos o nosso cérebro continua a trabalhar para processar as memórias que criámos ao longo do dia e descobrir quais são aquelas que deve eliminar e aquelas que deve guardar. 

Os sonhos ocorrem na fase REM, no entanto, a pesquisa mais aprofundada leva-nos a crer que os sonhos podem ocorrer também ocorrer na fase não REM; no entanto, quando o sono é mais profundo (fase REM) os sonhos são mais longos e complexos. 

Os cientistas acreditam que sonhar é parte do processo de aprendizagem, pois faz com que nos livremos de memórias “inúteis” e nos possamos fixar naquilo que realmente importa para a nossa mente. 

Assim, percebemos que os sonhos são fundamentais para a memória e, consequentemente, para a nossa produtividade nos estudos, no trabalho e em diversas outras atividades. 

Só sonhamos com o “mundo” que conhecemos?

Muitas vezes, questionamo-nos sobre aquilo com que sonhamos. Serão as imagens e construções que o nosso cérebro faz meros fragmentos da nossa experiência quotidiana? É difícil conseguir encontrar uma resposta objetiva para esta questão, já que a investigação sobre o tema envolve uma carga subjetiva que depende dos testemunhos de cada sonhador. 

Para melhor compreendermos esta questão, Rúben Cardoso explica que: “Só sonhamos com pessoas e sítios que conhecemos, basicamente, sonhamos em função daquilo que somos capazes de recordar; no fundo, o sonho depende da nossa capacidade de abstração. Há coisas com que sonhamos que não são possíveis: já sonhei em voar e ter asas, mesmo sendo isso impossível. Acredito que os sonhos sejam uma mistura daquilo que já vivemos e daquilo que somos capazes de imaginar”.

“Não me lembro do que sonhei”

Com certeza que todos já o dissemos ou sentimos a certo ponto na nossa vida: “Não me lembro do que sonhei”.

A neurologia explica que um fluxo extra de sangue é enviado para partes cruciais do nosso cérebro durante a fase REM do nosso sono: o córtex, que preenche os nossos sonhos com conteúdo, e o sistema límbico, que processa o nosso estado emocional. O lóbulo frontal, responsável pelo nosso sentido crítico, fica em repouso, o que significa que costumamos aceitar cegamente o que está a acontecer nos sonhos, mesmo que não tenha sentido. Desta forma, os sonhos podem ter contornos confusos e, por isso, tornar-se mais difíceis de reter. Sonhos com uma estrutura mais “clara” são mais fáceis de lembrar.

Todavia, existe um componente químico crucial que garante que as imagens dos sonhos sejam retidas: a noradrenalina, que  é uma hormona que estimula o corpo e a mente. Os seus níveis são naturalmente mais baixos durante o sono profundo. Francesca Siclari, médica investigadora do sono no Hospital Universitário de Lausanne, na Suíça, diz: “Acho que se nos lembrássemos de todos os detalhes, começaríamos a confundir as coisas, não saberíamos distinguir o que está a acontecer na vida real.” Segundo Siclari, pessoas que sofrem de distúrbios do sono, como a narcolepsia, podem ter dificuldades em diferenciar eventos reais de sonhos, e isso pode deixá-las confusas e constrangidas. Efetivamente, os sonhos de que mais nos lembramos são aqueles provenientes de períodos específicos do nosso ciclo de sono, influenciados pelas substâncias químicas que circulam nos nossos corpos adormecidos em determinados momentos. Diversas vezes estamos a sonhar antes do despertar e, devido à nossa rotina matinal, acabamos por não nos lembrar, porque acordamos sobressaltados com o despertador, por exemplo, o que provoca um pico dos nossos níveis de noradrenalina. 

Estima-se que 95% daquilo que sonhamos é esquecido nos primeiros 5 a 10 minutos depois de acordarmos. Uma maneira eficaz de conservarmos os sonhos é escrevê-los ao acordar ou gravar aquilo com que sonhámos assim que despertamos.

“Sonhos maus” ou pesadelos

“Alguns estudos mostram que a grande maioria das emoções sentidas durante um sonho são coisas negativas, e isto até parece ter uma certa importância evolutiva, no desenvolvimento do ser humano, porque na altura em que passávamos o dia todo a enfrentar animais e perigos estavam sempre à espreita, quem estava durante o sonho mais ansioso vivia mais preparado para responder mais rapidamente, o que poderia justificar a questão do pesadelo em si.” , esclareceu Rúben Cardoso. 

Os pesadelos não parecem diferir muito do sonho em geral. A questão é que são capazes de promover uma resposta emocional muito mais intensa. As razões para isto acontecer não são muito claras. Alguns estudos que avaliavam doentes com stress pós-traumático verificaram que eles apresentavam uma incidência maior de pesadelos. Uma hipótese levantada é que algumas regiões do cérebro, envolvidas no momento, no qual se inclui a amígdala cerebelar, podem estar mais sensíveis por serem mais estimuladas.

Crianças vs. Adultos

O sonho das crianças é diferente do sonho dos adultos. Alguns dados apontam que até aos sete anos de idade, apenas 20% das crianças dizem que sonham. Isto porque, nestas idades, os sonhos são muito mais simples, compostos por imagens estáticas, relativos a coisas mais básicas. Com efeito, as crianças por vezes não chegam a perceber que são um agente ativo no sonho e só à medida que vão crescendo é que se vão apercebendo de tal. 

O neurocirurgião Rúben Cardoso apresentou um conceito novo que se apelida de “terror noturno”. Diferente do pesadelo, este acontece nas primeiras horas do sono da criança entre os 5 e os 12 anos, quando há uma mudança no período de sono ou quando acordam de forma “incorreta”; ao fazerem a transição de um momento para o outro, as crianças assustam-se, uma vez que não estão familiarizadas com a sensação, o que as pode levar a chorar ou gritar.

Influência do álcool nos sonhos

Apesar de o álcool ter uma componente excitatória, ele possui um papel inibitório, isto é, ativa neurotransmissores inibitórios. O que o álcool faz, numa fase inicial, é gerar um período de sono da fase não REM mais prolongado. Assim, a substância provoca uma redução dos períodos de sono REM, o que por sua vez conduz a pessoa a um sono mais fragmentado. Sendo o sono mais fragmentado, a pessoa tem tendência para acordar mais vezes durante o sono, o que a leva a crer que sonha mais, pois tem mais memórias. “Sistematicamente a pessoa acorda e recorda-se de uma parte do que estava a sonhar”, reiterou o neurocirurgião. Rúben Cardoso salientou, ainda, que tal como o álcool, alguns sedativos também podem provocar alterações no decorrer normal do sono e que, por vezes, estes acarretam mais prejuízos que benefícios. 

“O espelho e o sonho são coisas semelhantes”, Saramago

O escritor português José Saramago escreveu que: “Além da conversa das mulheres, são os sonhos que seguram o mundo na sua órbita. Mas são também os sonhos que lhe fazem uma coroa de luas, por isso o céu é o resplendor que há dentro da cabeça dos homens, se não é a cabeça dos homens o próprio e único céu.”.

Rúben Cardoso conclui dizendo: 

Para concluir o neurocirurgião apelou à importância de sonhar: “Não podemos abdicar do sono, nem do sonho porque se abdicarmos disso é como se abdicarmos de um pedacinho da nossa humanidade. O sono e o sonho são como uma peça de teatro, quando passamos de um ato para o outro, quando dormes estás a fazer um reset de algumas coisas para que no dia seguinte possas ter uma nova sessão, uma nova obra de arte à espera de ser criada.”.