Pressão e Tabu

E a vida é só isto?

Mudar implica fugir àquilo que é confortável. Ao longo da vida, vão existindo pequenos ajustes. Reconhecer que é preciso mudar drasticamente é um passo mais difícil de se dar. Inês Saldanha e a sua família, e Ana Teresa Augusto deram essa volta de 180 graus nas suas vidas.

Beatriz Valente, Bruna Gorinelli, Carolina Valadão, Rúben Matos

Ilustração, Beatriz Valente

Os planos saíram-me furados. E agora?

Ao longo de toda esta revista, fala-se muito de pressão, expetativas, mas também de propósitos. O propósito de atingir determinado resultado ou deixar alguma marca na comunidade. Antes dessa dimensão de propósito, cremos que cada uma das histórias que tem vindo a ser apresentadas ao longo destas páginas tiveram também um propósito como mote.

Somos jovens. Legitimamente, temos sonhos e ambições. Não há que o esconder. Estamos naquela fase da vida em que tudo começa a encaminhar-se para um determinado rumo, enquanto algumas dúvidas vão assaltando a caminhada. Esse início dá-se com as aspirações das nossas famílias e os sonhos que muitas vezes são em nós projetados. Inclusive na forma como imaginam o nosso trajeto no sistema de ensino. Diferença menos diferença, a esmagadora maioria dos jovens a entrar no marco das duas décadas de vida não tem um ideal de vida muito diferente daquele com que sonhamos. 

Neste momento, queremos terminar a licenciatura a que nos propusemos, ir ganhando alguma experiência em projetos paralelos, para que, uma vez no mercado de trabalho, consigamos o mais rápido possível encontrar a tão almejada cadeira de sonho. Cadeira de sonho que, subentenda-se, nos permita fazer aquilo que nos realiza, mas também aquilo que nos dá estabilidade financeira.

É aqui que entra a convicção que queremos entender: enquanto jovens, sentimos que há uma clara educação para a estabilidade enraizada. A comparação não é mais lírica, mas permite entender o fenómeno: é quase como que se a nossa vida fosse constituída por uma série infindável de pontos de uma lista de compras que têm de ser escrupulosamente cumpridos uns a seguir aos outros. Tudo parece estar alinhado de forma inequívoca, até deixar de estar. Surgem as dúvidas, e a grande questão: e a vida é só isto?

Na maior parte das vezes tendemos a ficar pela superficialidade das questões. Neste caso, a resposta “é assim porque sim” não é suficiente. Não pode ser suficiente. O sonho da estabilidade e o medo da mudança não existem porque sim. De um ponto de vista social e psicológico tem de haver algum conjunto de explicações lógicas que o permitam perceber. Não perceber na totalidade, mas, pelo menos, dar umas luzes sobre o porquê de as coisas funcionarem desta forma e não de outra. 

Fugir à norma é ainda muito fora da norma. Não encontramos todos os dias histórias de quem no espaço de pouco tempo decidiu inverter completamente o rumo da sua vida. Por isso é que é tão refrescante saber que essas histórias existem e são reais. Talvez porque nenhum de nós teria coragem de o fazer. 

A Ana Teresa Augusto decidiu fazê-lo. A Inês Saldanha, o seu marido e os quatro filhos decidiram fazê-lo. Hoje, vivem uma vida totalmente nova, mas ainda assim nada perfeita. Há ainda a ideia instalada de que uma mudança custa apenas quando se dá a transição, mas que depois tudo fica perfeito, e sempre para melhor. Claro que muita coisa muda. Não se trata de um processo simples, livre de espinhos. As mudanças pagam-se caras e trazem a instabilidade que, na espuma dos dias, pode representar um quanto de adrenalina, mas que, no longo prazo, assusta. As duas histórias que apresentamos são uma exceção. Representam o cúmulo da pressão e insatisfação, que se traduziu numa viragem total, mas nem por isso menos ponderada.

Estabilidade: precisa-se!

A sabedoria popular não tem dúvidas em aconselhar: “Quem está mal, muda-se”. O conselho pode servir para pequenas decisões com impacto quase insignificante, mas, quando se trata de tomar decisões que significam mudanças de fundo, o caso muda de figura.  A estabilidade é sempre o primeiro plano. E essa estabilidade passa por cumprir uma série de etapas apontadas como naturais no curso da vida, que grão a grão vão permitindo a consolidação das tão desejadas certezas. 

Essa preocupação começa logo no início da vida. A infância e juventude de hoje não é a mesma de há três décadas. Fora as naturais mudanças no mundo, há indicadores tão simples, como o índice de escolaridade, que permitem comprovar esses anseios. Maria Manuel Vieira, investigadora no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa (ICS), onde coordena o Observatório Permanente da Juventude (OPJ), estuda há mais de 20 anos as mudanças na formação e expetativas dos jovens. 

Ao longo dos anos de investigação, é indesmentível a conclusão de que os níveis de escolaridade em Portugal são positivamente incomparáveis aos do Portugal saído de 40 anos de Estado Novo. De um ponto de vista crónico, as gerações que antecedem aqueles que hoje são jovens – onde se incluem essencialmente os pais e avós –, são marcadas por baixos níveis de qualificação. 

Este dado parece insignificante, mas explica o porquê de haver “sobretudo entre as classes médias baixas uma grande aposta numa escolaridade prolongada por parte dos filhos. Muitas famílias e muitos pais depositam uma grande esperança na escolaridade dos filhos para que eles atinjam posições sociais ou um estatuto melhor do que aquele que eles próprios atingiram”, explica a socióloga.

As expetativas demonstradas pelos pais são legítimas à luz da velha máxima de que os pais querem sempre o melhor para os filhos. Quase que inconscientemente, os filhos tentam corresponder a essas aspirações e cumprir esses desejos. Os tempos são outros, pelo que “a compreensão por parte dos pais é maior do que era há 40 anos, em que o filho do médico tinha que ser médico, o filho do advogado tinha de ser advogado”. Também por isso é cada vez mais frequente ouvirem-se histórias de alunos que ingressaram num determinado curso, perceberam que não era bem o que queriam, e, por isso, decidiram mudar o seu trajeto no ensino. 

Como lhe chama Maria Manuel Vieira, essa “reversibilidade de trajetórias” é hoje mais frequente, mas tem sempre inerente os dois lados da moeda. Por um lado, representa “a busca de uma honestidade perante aquilo que se quer mesmo da vida para o próprio”. Por outro, “tem um custo que é o tempo acrescido e os gastos que uma decisão dessas acarreta”. “Simplesmente há famílias que não conseguem suportar esses custos, mais em termos financeiros do que em termos de compreensão de que aquilo pode não corresponder ao que os jovens podem querer”, defende a investigadora.

Apesar de cada vez mais ser a perspetiva e ambição pessoal do filho que fala mais alto, essa pressão camuflada está sempre lá. Aqui, mais uma máxima: “Filho, podes ser o que quiseres desde que sejas feliz”. Será mesmo assim? “É evidente que o ser feliz para um pai médico não é bem o filho desejar ser carpinteiro”, contesta a coordenadora do OPJ. Quando são dadas esse tipo de indicações é “claro que depois há um trabalho dos pais para, ainda que indiretamente, irem reorientando o filho para uma outra área que não corresponda a uma descida de estatuto”. 

O ensino constitui a antecâmara de entrada na vida adulta. É por essa altura que a educação e os valores transmitidos em casa pela família começam a ganhar reflexos na prática. Como tal, o apoio da família é um alicerce a ter em conta na tomada de decisões rotineiras, mas também nas decisões que definem o futuro. Ter ou não ter o suporte familiar numa decisão que se quer tomar pode inverter totalmente a vida de um jovem. 

De entre os vários estudos empreendidos, o grupo de trabalho de Maria Manuel Vieira publicava no ano de 2015 em livro um estudo financiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia, intitulado O futuro em aberto. Entre outras conclusões, o suporte familiar em circunstâncias como as enunciadas são tidos como basilares. “A família é um suporte, mesmo quando a família não é conhecedora do sistema de ensino. Mesmo nas famílias com menos escolaridade continua a ser um suporte, uma almofada afetiva importante para um jovem ter confiança nas opções que faz”, relembra.

O exemplo da pandemia

Talvez por tantas e tantas famílias terem sentido na pele o que é não conseguir antecipar no longo prazo as suas vidas, não queiram ver essa instabilidade a invadir o dia-a-dia daqueles que nascem já neste século. Não é por isso menos verdade que o desejo de estabilidade é transversal à nossa genética enquanto seres humanos. “Nós somos, sem quaisquer dúvidas, seres de hábitos”. Quem o afirma é Filipa Jardim da Silva. Como psicóloga clínica, tem, nos últimos tempos, centrado o seu trabalho no acompanhamento de processos de mudança.  Antes de lá se chegar, tenta-se ao máximo evitar mudar. “Tudo aquilo que nos suscite transição para uma zona de desconforto, que nos coloque em causa a possibilidade de falharmos, tudo aquilo que tenha um revestimento de alguma imprevisibilidade, tem sempre uma componente muito pouco desejada em termos do nosso ADN”, explica. 

Por essa mesma razão, não é difícil de perceber “porque é que estamos todos a ter alguma dificuldade em reagir, por exemplo, à própria pandemia. Porque a pandemia tem todos esses ingredientes: é imprevisível, suscita impotência. De alguma forma também nos dá um sentido de vulnerabilidade e de finitude. E isso é tudo aquilo de que não gostamos”, defende.

A pandemia de Covid-19 veio acelerar as mudanças que já estavam a acontecer um pouco por todo o mundo. Se o mercado de trabalho era já, por exemplo, marcado cada vez mais pela flexibilidade e pelo freelance, com a pandemia essas tornaram-se caraterísticas ainda mais definidoras do mundo laboral. Até o próprio “mercado de trabalho se reduziu consideravelmente a partir do momento em que está globalizado”. Apesar dessas mudanças de fundo estarem já a ganhar terreno na última década, as pretensões do lado dos trabalhadores não são muito diferentes daquelas que eram na segunda metade do século passado. 

Os “30 anos gloriosos” – como lhes chama a socióloga Maria Manuel Vieira –, período que se seguiu à II Guerra Mundial, durante os quais todas essas aspirações de estabilidade estavam apenas a um passo de serem concretizadas. O período fora de crescimento económico, paz, prosperidade e, por isso, estabilidade profissional. Hoje, essa ambição continua. “Aquilo que nós sabemos dos vários estudos sobre a juventude é que, de uma forma geral, os jovens, sobretudo os jovens adultos, apreciam bastante a estabilidade. Só que, de uma forma realista, percebem que ela é cada vez mais difícil de alcançar”.

A mudança dos tempos parece colidir com o crescimento de toda uma geração que, apesar de mais permeável à adaptação às novas circunstâncias que mudam quase de dia para dia, está ainda muito agarrada a uma ordem de pretensões fácil de alcançar no passado, mas cada vez mais difícil de conseguir no presente e no futuro. É por isso também que o tema tem sido alvo de especial análise em várias conferências nacionais. A título de exemplo, a Presidência da República promoveu em 2015 a conferência Roteiros do Futuro. 

A análise do estudo permite retirar uma evidência: 85% da amostra em análise aponta “estabilidade” e “segurança” como os aspetos mais valorizados em relação ao trabalho. A par destes, há também uma esmagadora valorização de aspetos como “ter um trabalho que salvaguarde a saúde e o bem-estar” ou “ter um bom salário”. Ou seja, como afirma o estudo, “está-se nitidamente perante uma valorização do trabalho mais pelos seus aspetos extrínsecos e instrumentais”. 

A propósito da crise de 2008, a investigadora do ICS lança a questão: “porque é que houve, sobretudo na primeira crise de 2008, tanta emigração para o exterior sobretudo de jovens altamente qualificados?”. A resposta: “porque estavam justamente à procura da estabilidade que em Portugal não encontravam para constituir família, para ter uma casa, para viver sem grandes sobressaltos”. Quem o fez, mudou drasticamente a sua vida. 

Uma decisão fácil ou a necessária?

Dificilmente alguém toma de leve ânimo a decisão de abandonar o seu país, os seus amigos, os seus hábitos. Ninguém abandona um emprego de anos por sentir que precisa de mais sem mais nem menos. A palavra “mudança” pode ser apetecível, mas não representa um processo fácil. “Há um bocadinho uma ideia lírica do que é o processo de mudança”, defende Filipa Jardim da Silva. “A maior parte das pessoas gosta da ideia de mudar, mas não tem a perceção clara do que é que implica mudar, não conhece o processo de mudança nem se conhece suficientemente a si próprio para conseguir levar de uma forma eficaz esse processo”. 

A mudança exige, primeiro do que tudo, um processo de autoanálise. “Antes de fazermos qualquer tipo de mudança devemos, mesmo que em menor escala, parar, fazer uma reflexão internamente, ir à procura de marcadores corporais, racionalmente listar prós e contras…”, aconselha a psicóloga. A receita parece fácil, mas torna-se mais complicada quando há uma dificuldade cada vez maior em ler sinais e lidar com estados de espírito que não se controlam. “Hoje em dia nós olhamos à volta e vemos que temos adultos muito letrados a nível cognitivo, mas com um quociente emocional muito aquém daquilo que seria desejável”. O caminho passa por rejeitar impulsos irrefletidos, e apostar numa decisão consciente.

Que sinais podem indiciar a necessidade de uma mudança?

“Um impulso não muda nada, mas uma decisão consciente pode mudar tudo”. A frase é um dos conselhos-mor de Filipa Jardim da Silva, e serve de subtítulo à obra que lançou no final de 2019. Em Dar a Volta, a autora lança as bases que devem nortear um processo de mudança. De resto, a própria passou por um período de mudança na sua vida, ao abrir uma clínica em nome próprio. Uma mudança tão drástica como esta implica não só ponderação, mas também preparação. E uma convicção: a mudança traz vulnerabilidade. “Precisamos de cativar mais energia para gerir estas inseguranças acrescidas”, resume.

As inseguranças são naturais face ao futuro. Face ao passado, o sentimento de luto também é perfeitamente normal. Para trás ficam projetos falhados ou desejos não concretizados. Por isso, é importante não idealizar grandes perspetivas para o que pode vir depois do ponto de viragem. Ao idealizar-se a mudança, surge o risco “de acharmos que aqueles custos, na verdade, nos estão a dizer que errámos e que fizemos uma escolha que não devíamos ter feito”.

O processo pode ser equiparado àquele que se segue a um término de um relacionamento. Há quem acabe uma relação e tenha tendência a achar que os meses seguintes são de alegria plena, e abertura imediata ao início de um relacionamento. “Pode acontecer, mas isso não tem de acontecer e não acontece com toda a gente. Eu posso acabar uma relação e ter um período de luto em que vou estar triste, em que me vou lembrar de bons momentos e vou sentir que se colocou um ponto final numa relação e num projeto de vida a dois que não funcionou”.

Mudar significa alterar o presente, sem saber o que daí pode advir. Alterar rotas há muito determinadas. Mudar o rumo de uma caminhada que sempre teve um rumo mais do que certo. E a viragem de trajeto traz tudo aquilo que de bom e mau se possa imaginar. A imprevisibilidade e o medo podem sempre surgir. Por isso, é importante não deixar de tomar qualquer decisão a pensar nas consequências negativas que podem surgir.

“Por aversão à mudança, muitas pessoas morrem aos 30 e são enterradas aos 80”, ressalva a autora. O desconforto faz sempre parte do processo. Também por isso a mudança não deve ser encarada como algo opcional. “Para cumprirmos com o nosso máximo potencial, precisamos de abraçar a mudança. Por isso, não é uma opção nos resignarmos e ficarmos sempre na nossa zona de conforto”. Tal explica o facto de, conclui, “precisarmos de abraçar esta zona de desconforto, essa zona de desafio porque, sem isso, não há crescimento pessoal, e sem crescimento pessoal, naturalmente, que depois não há bem-estar”. 

E quem muda uma vez, muda duas ou mais vezes. Porque a mudança pode não se resumir a um único momento na vida. Da mesma forma que uma mudança pode ser falhada, podem surgir mais vezes a necessidade de virar a página. Por isso, deve prevalecer a auto-observação e o autocuidado. “O importante é que as mudanças sejam feitas por nós, pela nossa agenda, e não mudanças em função das expectativas dos outros”, sublinha.

A menina da cidade tornou-se menina do campo

Ana Teresa Augusto entrou nos 30 com tudo o que faz uma vida parecer perfeita. Ao emprego estável numa grande tecnológica, juntava-se um salário confortável, a casa dos seus sonhos, e o grupo de amigos ideal. Trabalhava, desafiava-se e ainda tinha tempo para fazer aquilo que mais a preenchia: viajar. Com trinta e três anos, decidiu trocar o certo pelo incerto. A justificação? É simples – “Queria passar a viver durante a semana inteira e não só ao fim-de-semana”. 

Créditos // Ana Teresa Augusto

Há quem diga ter um lema de vida. No teu caso talvez acabe por ser, essencialmente, mais do que tudo, uma palavra a definir a tua vida: mudança. Sempre foste uma pessoa aberta a mudar, a tomar decisões até um bocadinho loucas? 

Sim, acho que sim. Sabes que eu sempre fui conhecida entre os meus amigos e a minha família por ser aquela que nunca se enquadra na maioria. Gosto mesmo muito da mudança, porque a mudança é sempre colocar-me numa zona de desconforto. E eu gosto disso. Por isso, tudo o que implica mudar do zero, ir para realidades diferentes, conhecer pessoas diferentes, ter que dar algo diferente de mim soa-me perfeito. Eu acho que isso é um bom estímulo. E eu alimento-me desse estímulo, dessa adrenalina que é começar do zero, ter novas experiências, de ir caminhar sozinha, vender o carro porque ia para a América e entretanto não fui e depois mudar os planos todos e tentar sempre arranjar novas formas de me alimentar.

Os trinta são altura certa para arriscar?

Eu penso muito no meu propósito de vida, no que é que ando cá a fazer, o que é que eu quero para mim, o que é que me faz realmente feliz. Isso sempre me acompanhou. E realmente os 30, como se costuma dizer, “bateram-me” um bocadinho. Porque fizeram-me perceber que já conquistei algumas das coisas que estavam na minha lista de objetivos, que vêm daquela fase em que estamos na faculdade e só pensamos: certo, agora quero ter o meu curso, depois o meu carro, depois comprar a minha casa, depois ter um trabalho, um bom ordenado… Eu cumpri todos os meus objetivos. Mas acabei por perceber que não eram tanto os meus objetivos, mas mais os objetivos que a sociedade nos incute, que me foram incutidos pela minha mãe, e que também são resultado daquilo que vemos da vida dos outros. Nessa posição tu acabas por pensar que se os outros os cumprem tu também os tens de cumprir… 

Foi aí que percebes que, provavelmente, os teus objetivos não eram bem aqueles que há anos orientavam a tua a vida, não?

Sim, é quando chego aos 30 anos – e já tinha começado um boa vida, uma muito boa vida – que percebo que aquilo não me preenchia. Mas eu também percebi isto porque gosto de ser uma pessoa alerta comigo própria. E aos 30 eu percebi que aquela lista de objetivos não era suficiente, e, pensando no futuro, não havia nada que me estimulasse, que me preenchesse. E então tive de passar um período para poder olhar e poder perceber o que é que tinha de mudar para poder começar a fazer sentido. Coincidiu com os 30, é verdade. E ainda bem. Porque há quem tenha isto só aos 40. E foi uma mudança muito grande! Claro que as mudanças não são sempre uma maravilha. Têm sempre uma parte boa e má. E foi um caminho duro. Mas um caminho que eu escolhi. Foi mesmo o chamado “partir pedra”…

Tomar uma decisão dessas deve implicar o pesar de muitos prós e contras. E essas coisas difíceis de que falaste estão sempre lá na altura em que se toma a decisão final. No teu caso, foi uma decisão dura?

Tomar a decisão não foi difícil, até porque sou muito de impulsos. Foi rápida. A minha decisão passou primeiro por pensar que aquilo não estava a servir para mim, sentir que era necessário parar e que, pela primeira vez na vida, era necessário dar-me tempo para saber o que é queria. O que é difícil é não passares por maluco. Quando te sentes tão diferente da grande maioria à tua volta, quando foges à norma, quando vais contra àquilo em que a tua família acredita, e quando até vais contra a ti próprio ( porque passas uma vida inteira formatado com aquela mentalidade, mesmo sabendo que aquilo não te preenchia), o que é difícil é seguires a tua convicção. Isso é que abala um bocadinho. No dia 2 de janeiro de 2019 consegui aquilo que queria. Fiquei desempregada. E entrei numa situação de pânico. Pensas : “Já está. Conseguiste. E agora como é que vou lidar com esta incerteza?”. Como é que ia explicar à minha mãe que estava desempregada, mas estava tudo bem? O desconhecido deixa-nos em pânico. Mas tomada a decisão, tens de começar a construir o teu caminho.

O receio daquilo que as pessoas que estão à nossa volta vão pensar deve ser, de facto, do que pesa mais. Ficar desempregada abriu-te as portas na altura certa?

Mesmo que tu queiras tomar as tuas decisões, sem pensar nos outros, é impossível. Ou vives à parte numa mata isolada da Amazónia com os índios, e não conheces mais nada, ou então é impossível não te deixares influenciar por aquilo que te rodeia. Podes não gostar de redes sociais, por exemplo, mas também não as podes ignorar, porque se quiseres lançar um projeto, dar-te a conhecer e saberes o que se passa lá fora tens, inevitavelmente, de ter uma conta. Mesmo que não queiras, esta pressão social existe. 

Sempre gostei de ser diferente. Não por ser especial, mas por achar que somos todos diferentes e todos temos de lutar por essa diferença. Eu nunca gostei de me vestir de igual a ninguém. Se alguém me dizia que tinha mesmo de ir um sítio e já lá foram dez, já não queria ir. Nunca gostei de ir pelas dicas dos outros. Sempre fui assim. E acho que com a idade tem ficado pior. Se não qual é a nossa adrenalina? Nenhuma!

Quando decides seguir esse caminho não assusta o facto de passares da total previsibilidade para a total imprevisibilidade?

Sim, totalmente. Além da pressão, é o não saber o que vem depois. Sabia lá eu que estava tipo nómada?! Em 2020, por exemplo, não tive casa.  E o que eu me ri com isso. Eu, que adorava a minha casa toda jeitozinha, andei a viver com a mochila às costas e a saltitar a casa dos meus amigos. Neste contexto, é um bocadinho difícil não te deixares absorver por uma série de dúvidas. Estou a tomar a decisão certa? O que é que vai ser da minha vida? Aqueles aguentaram, subiram na empresa, agora vão casar e ter filhos… As vozes de fora estão sempre a pairar em redor da tua cabeça. Mas é a minha vida, as minhas escolhas. Eu posso ser louca aos olhos de muita gente, mas uma coisa é certa: até ver, tudo aquilo que eu fiz foi tendo a consciência de que todas as consequências que pudessem surgir iriam cair em mim. Eu é que me sustento, eu é que tive de gerir as minhas prioridades. E essa é a parte que as pessoas não veem. Se tudo correr mal, sou eu que vou ter de resolver. Eu conto comigo e só comigo. E esta parte também pesa muito na decisão.

Quando se está mal e se muda, é mais fácil perceber uma rutura dessa escala. Quem olha para a tua história tem dificuldades em conseguir perceber por que razão é que decidiste mudar na fase da vida em que estavas. Para lá de um impulso, tinhas a consciência de que também irias perder muita coisa?

Eu estava com um muito bom ordenado, com uma boa qualidade de vida, não tinha qualquer dificuldade. E quando tomei a decisão que tomei tinha plena consciência de que tudo isso ia acabar. Lá está: é uma questão de prioridades. Todas as semanas ia jantar fora, comprava roupa atrás de roupa, viajava imenso. Antigamente comprava roupa a toda a hora, estava sempre a par da coleção da Zara de 15 em 15 dias. Estive dois anos sem comprar roupa. Mas na altura não precisava disso para ser feliz. Preferi gastar o dinheiro nos cursos de cozinha. Fiz todos os que encontrei. Sou uma apaixonada por gastronomia. Experimentava todos os restaurantes novos que iam surgindo em Lisboa. Tomada a decisão, deixei de o fazer. Em vez de ir para a rua, todas as semanas levava os amigos lá para casa e cozinhava. Nunca me faltou boa comida, bom vinho e o estar com os amigos. Até viajar fui. No ano em que me tornei desempregada estive um mês na Indonésia. Novamente, prioridades. E foi um ano espetacular. Um ano em que fui muito feliz, com muito pouco. Com menos de metade por mês do que tinha no ano anterior. Tenho saúde, licenciatura, mestrado, cursos e tudo mais um par de botas. Tenho energia, força de vontade, sou inteligente… O dinheiro acaba sempre por chegar. Mas do que é que serve ter o dinheiro se não o sabes aproveitar nas coisas certas?

Tocas muito no ponto de que esta é uma decisão tua. Mas também conseguimos perceber que tens tido muito apoio de amigos, família. Se não tivesses tido esse apoio, tinhas decidido arriscar? 

Eu acredito que sim. A decisão foi minha, tomei-a sozinha, e só depois a comuniquei. Claro que eles estão sempre lá. Há um exemplo engraçado, mas acho que o demonstra bem. Quando quero estar em Lisboa, tenho imensas casas por onde rodar. Vou para casa de uma que me está sempre a chamar e que diz que enquanto lá estiver cozinho para ela, a outra empresta-me o carro, na outra fazemos outra troca. Porque também já o fazia antes. Em tempos era eu a emprestar o carro, a ter sempre alguém no sofá. É a amizade a acontecer. 

Mas essa essência já nasceu contigo? É mesmo da tua personalidade, ou consegues encontrar algum ponto, por exemplo na tua infância, na educação dos teus pais, na liberdade que te deram que te tenha permitido formar essa maneira de olhar para a vida?

Isto deve fazer parte de mim. Acho eu… nós não sabemos, não conseguimos ver isso. Embora tenha estudado sempre em Lisboa, eu não fui sempre uma menina de Lisboa! Eu sou do campo. A minha infância foi feita na rua. A cair na estrada. Arranhões na perna, bicicletas, a subir árvores. Para todos os efeitos, isto não é uma mudança assim tão grande em mim. Eu acho que aos 30 fui buscar a minha essência.

Claro que o meu caso também não foge à regra. E a verdade é que o meu passado é de muita mudança, de ter muitos reversos da medalha. Mesmo na infância, por exemplo, mudei muitas vezes de casa, tive muitas alterações ao nível do meu contexto familiar. Uma infância de muitas mudanças, muitas perdas, por ter de me ajustar a novas realidades. E isso podia ter me dado para duas formas: ou encarar tudo o que acontece como uma oportunidade para fazer disso uma coisa gira e com algo a ensinar, ou então ser uma pessoa completamente diferente, amargurada, porque aconteceram outras coisas na minha vida que são chatas. O meu feitio sempre me fez ver o copo meio cheio. Essa visão faz parte da minha vida desde sempre. Estar em paz para comigo é essencial. 

Nesse momento logo imediato à mudança, o T-table, um projeto que acaba por ser muito feito à tua medida porque junta o gosto pela cozinha ao gosto de criar e conhecer pessoas, foi o projeto certo para te trazer essa paz de que falas?

Sem dúvida. O T-table é um projeto muito giro, que neste momento até está na gaveta. Esse foi um projeto que criei em 2019, quando estava a fazer o curso de cozinha. Porque mais uma vez, como gosto de me desafiar, decidi ir para cozinhas de pessoas que não conheço de lado nenhum e fazer comida para muita gente… sozinha. Era o melhor desafio que eu podia ter encontrado para me atirar aos lobos! 

Quando fiquei desempregada e comecei o curso de cozinha pensei que aquela era a altura certa para meter o conceito em prática. O conceito era simples: os clientes juntavam um grupo de amigos, escolhiam um tema, e eu tratava de tudo. Os valores eram simbólicos, só para custear as despesas que eu tinha com os alimentos. Eu metia uma mesa alusiva ao país, fazia uma ementa gigante, com comida até mais não. Mesmo para eu conseguir treinar e testar. E confesso que os T-Table que fiz nesse ano foram espetaculares. Adorei a sensação. Aquilo realizava-me. Era tudo: a parte da gastronomia, a parte da pesquisa sobre o país, a parte do desafio, porque a logística não era fácil. Eu estava dias a preparar um T-Table. Eu saía de lá estafada, mas feliz da vida. 

É impossível passarmos ao lado da pandemia que vivemos. Enquanto que para muita gente uma porta se fechou, no teu caso surgiram uma série de oportunidades e embarcaste numa aventura gigante que foi percorrer a Nacional 2. Mas a tua ideia original não era fazer a Nacional 2…

Eu adoro ler. Portanto, eu adoro bibliotecas. E estava inscrita na biblioteca onde morava em Lisboa. E como é que eu escolho os livros que leio? Não escolho! Vou à biblioteca, puxo uns livros de vez em quando e vou espreitando umas frases. Aquilo dá para trazer 10 livros para casa. E costumo trazer aos 10 livros, para depois decidir o que ler. Um desses livros que eu abri era sobre uma história verídica. E contava a história da autora, que quando era jovem foi percorrer o Pacific Crest Trail. Fica nos EUA, tem 4.000 quilómetros. Ela não tinha qualquer preparação, não fazia grande exercício físico. E a questão da caminhada inspirou-me. E claro que aquilo também fez sentido para mim porque gosto de desporto, caminhadas… Eu acabei de ler esse livro em maio, e em junho fui logo fazer a Rota Vicentina. E daí surgiu o primeiro cheirinho de caminhada. Fizemos apenas 100 km´s da Rota Vicentina. E aquilo mudou a minha vida. Eu estive 3 semanas – a caminhar em si foram cinco dias – a fazer uma média de 20km por dia. Quando tudo acabou, eu até chorei! Eu vivi mesmo numa bolha. 

Liberdade, acima de tudo!

Sim, é uma liberdade acordarem, decidirem o que vão fazer, utilizar o vosso corpo, ter tempo para estar com as pessoas, e tempo para fazer tudo. E chorei porque aquilo que vivi nunca nunca vai entender e vai ser impossível reproduzir. E isto é só sobre a Rota Vicentina.

De regresso a Lisboa, a sensação era a de que eu tinha acabado de viver uma coisa fenomenal e estava outra vez enfiada entre quatro paredes. Depois acabei por ir com uma amiga para o Gerês. Voltei para Lisboa novamente e pensei: “Oh meu deus, outra vez em Lisboa!”. Agora sim chega a Nacional 2.

Na ida para Lisboa, parámos em Aveiro na casa de uma amiga e disse-lhe que não queria estar mais em Lisboa. E ela disse-me “Vê lá o que é queres fazer, que eu estou livre até setembro”. Eu vinha no carro, a voltar no Gerês, vinha de barriga cheia, e eu comecei logo a pensar no que é que íamos fazer. E lembrei-me de uma conversa que tinha tido com uma amiga minha há um ano, onde ela me tinha falado da maior estrada de Portugal. E o 2 ficou-me na cabeça. E procurei no Google Nacional 2. E a primeira informação que me aparece é que era a maior estrada de Portugal, terceira maior estrada do mundo – e nisto os meus olhos já brilhavam – , 738 quilómetros. Fiquei estérica. Eu vou fazer Portugal de norte a sul a pé! E foi assim que surgiu. Duas semanas depois já estávamos a começar. E eu não vi mais nada. Só sabia que ia comer muito bem, que ia passar por cascatas, praias fluviais, e que ia ter muito tempo para fazer aquilo. Fui ao Google, que é o meu melhor amigo, e decidi!

Basicamente fizeste 738 kms ao longo de 35 dias. Só tomaste consciência daquilo que estavas a fazer quando começaste a perceber que eram muitos quilómetros, e que nem tinhas grande preparação para o fazer?

A parte da preparação física nunca me assustou. Sou desportista, sempre fui. Ali era só caminhar com uma mochila às costas. Até porque eu acho que a tua parte física fica completamente ultrapassada pela tua cabeça. Se a tua cabeça quiser fazê-lo, tu fazes. Nem que depois te atires ao chão, completamente estourado, que foi o que me aconteceu quando cheguei ao Algarve. No dia em que cheguei a Faro, caiu-me tudo em cima. Tudo me doía. Mas antes disso, nada. 

Já estava decidido que a Gabriela ia só caminhar comigo até Viseu, que fica ao nível de Aveiro. E este primeiro registo é completamente diferente daquele que depois fiz sozinha. Éramos duas, completamente sem horários, rotinas. Deitávamo-nos tarde, começávamos a caminhar tarde… tudo aquilo que não se deve fazer. Mas lembro-me de pensar: onde é que me fui meter? Fazer isto sozinha?! Não era a questão física, mas ter a certeza de que era aquilo que me apetecia. E eu decidi fazer a caminhada na pior altura do ano. Comecei na última semana de julho. Tinha temperaturas de 40 graus. E no dia em que comecei a caminhar sem a Gabriela pensei: ou vai ou racha. Era a grande prova de fôlego. Mas assim que comecei, deu-se. Se tu te deixares o cansaço apoderares-te de ti, ficas mais fragilizado. Se ficas mais fragilizado, isso começa a mexer com a tua cabeça. E aí é que começam a vir as questões todas. 

Referiste que decidiste fazer a caminhada na pior altura do ano. A verdade é que não só era a pior altura do ano por estar muito calor, mas também porque se tratava da Nacional 2, em agosto, e numa altura em que muitos portugueses ficaram cá dentro e decidiram percorrer a Nacional 2 de carro ou de mota. Nunca te assustou pensares que eras mulher, a percorrer uma estrada que não conhecias e sem saber com quem é que te ias cruzar, o que é que ia acontecer?

Todos os dias pensei nisso. E todos os dias fui recordada disso. O medo está sempre lá, faz parte, e ainda bem. Serve para nos manter alerta. Se aparecesse um matulão, eu não conseguia correr. Estava cansada, super fatigada. Se aparecesse alguém e me mandasse para o meio da serra, eu ficava lá. Todos os dias quando começava a caminhada começava com o meu mantra. Eu não pedi para me divertir, para ter a experiência incrível que tive. A única coisa que eu pedia sempre era que ninguém me fizesse mal, e que conseguisse terminar aquilo sã e salva. Sempre que encontrava pessoas pelo caminho, todo o santo dia as pessoas alertavam-me. “A menina não tem medo de ir sozinha?” ou “devia ir com companhia” eram algumas coisas que ouvia. Só que isso também foi uma aprendizagem, de ouvir, respeitar o comentário da pessoa e aceitá-lo de forma a que não me criasse ansiedade, porque nas primeiras vezes isso acontecia. 

Começaste em Chaves, acabaste em Faro. Percorreste a estrada de uma ponta à outra. Mas pelo caminho passaste por dezenas de terras, aldeias, umas maiores do que outras. E encontraste pessoas que também não te conhecendo de lado nenhum, receberam-te como se fosses da família. Isso surpreendeu-te, ainda para mais tendo em conta que vivemos um contexto estranho, por causa da covid?

Não há palavras para descrever aquilo que vivi, aquilo que as pessoas me deram. Porque se tivesse a passar em Lisboa ninguém ia olhar para mim. Há muita gente a circular, ninguém quer saber. Iam ver-me de mal aspeto, e era indiferente… Houve dias em que estava com um aspeto terrível, toda transpirada, como uns calções todos rotos. Estava seca que nem um carapau. Com mau aspeto. Era Verão, estava super bronzeada, só isso é que me salvava (risos). Mesmo assim, as pessoas não sabendo quem eu era, nunca questionaram se eu tinha dinheiro ou não tinha. Pelo contrário. Eu tive pessoas a pedir-me o NIB para me transferirem dinheiro! Acham que alguém fazia isto em Lisboa? Por isso é que eu saí de Lisboa e agora estou a viver em Estremoz. 

O MotoClube de Faro esperava-te quando chegaste à cidade. Como é que eles souberam que estavas nessa aventura?

Isso então foi mesmo incrível… Antes eu não sabia nada da N2, mas agora sou embaixadora da estrada! A N2 tem um público mais adulto. Não são tanto os jovens que vão fazer a Nacional 2. São antes os casais. E a N2 é muito falada no Facebook. Existem muitos grupos da Nacional 2 no Facebook. Ao longo da caminhada é que eu fui conhecendo muitas pessoas que me perguntavam se eu não estava no Facebook. Houve alguém que começou a publicar fotos minhas num desses grupos do Facebook e a avisar que quem estivesse a fazer também a N2 se iria cruzar comigo! Diziam para me cumprimentar, dar águas… E começou quase um movimento à Teresa no Facebook. Daí o Motoclube, pelos vistos, segue um desses grupos da Nacional e pediu para alguém me conseguir contactar, porque eles teriam todo o gosto em me receber. Depois houve alguém que veio falar comigo pelo Instagram a explicar a vontade do MotoClube de Faro. E foi assim que ficou combinado que me iam receber a Faro. 

Foi mais um momento a juntar a tantos outros que viveste nesses dias…

Até hoje eu nem sei bem o que aconteceu… Eles foram-me esperar à rotunda de Faro, já tinham todo um almoço preparado para mim e para todos os amigos. E eu acabei por ficar uma semana com duas amigas minhas a dormir no Motoclube de Faro! Mas o Motoclube, supostamente, só se associa a causas ligadas a motas. Eles próprios me disseram que a minha história não era uma história que, à partida, lhes fizesse sentido. Mas por algum motivo eles quiseram associar-se a mim. Fizeram questão de me receber. E num desses dias em que por lá estava, eles fizeram um jantar e ofereceram-me um troféu, dado pelo senhor José Amaro, presidente do Motoclube, uma personagem mítica. E fizeram um discurso que me emocionou! Eu estava a ser uma privilegiada por estar a receber aquele troféu. Estavam a dar-me aqueles troféu por aquilo que representava enquanto pessoa. Só de pensar até me emociono outra vez! Um gesto muito bonito que me vai ficar na memória…

Toda a experiência ter-te-á, certamente, ficado na memória. Também fizeste essa caminhada, mais com o objetivo de conhecer as terras e comer bem e tudo mais, mas muito com um sentido de auto-descoberta, de poderes estar contigo própria. Olhando em retrospetiva, esse propósito foi cumprido?

Sem dúvida. Eu queria estar comigo própria, estar no meio da natureza. Eu queria mesmo… viver. Viver a verdade. Dar-me a conhecer às pessoas. Conhecer as pessoas de forma genuína. Mas as pessoas fizeram totalmente a diferença. Eu vim de lá uma pessoa muito mais madura. Vim mesmo muito cheia. Vim mais sensível. A caminhada em si mexeu muito comigo. Eu chorei, ri, refleti muito sobre a minha vida, pensei muito sobre os últimos anos. Eu até estou a tentar passar aquilo que vivi para livro. Mas toda a experiência é algo que tenho muitas dificuldades em descrever. Desarmou-me por completo. O desafio de caminhar 9 horas por dia, o desafio do calor, da sede, do peso, do alcatrão a arder, do medo de estar sozinha. Conseguir lidar com os teus próprios demónios – porque toda a gente os tem. E eu sei que tentamos muitas vezes abafá-los, mas quando estamos sozinhos eles saltam cá para fora. Foi uma caminhada que me mudou muito, que deu para trabalhar muitas frentes.

Podemos ter o livro para quando?

Eu vim para Lisboa para escrever o livro! Mas, piolha saltitante que eu sou, estou neste momento em Estremoz e já arranjei trabalho num restaurante, o Larau. Agora estou aqui a desdobrar-me entre o restaurante e o livro. O meu objetivo era tentar escrevê-lo o quanto antes. O desafio é mandá-lo para editoras e esperar que alguma mostre interesse. 

E esse espírito de aventura já deve estar a magicar outras aventuras para breve. Por exemplo, pegar numa caravana e viajar pela Europa. Há algum plano de grande escala para breve?

Adorava (risos). Aliás, tenho uma amiga que tem uma caravana dela, e no ano passado até fizemos um fim de semana desses. Planos para já: estar em Estremoz, escrever o livro, trabalhar no restaurante e ser feliz. Estes são os meus planos agora. Já me deixei de fazer grandes planos a longo prazo, porque já percebi que isso não funciona. Eu para já estou feliz aqui, é aqui que quero estar. Agora, claro que gostava – e reparem no verbo que estou a usar – de explorar a América do Sul, o resto do mundo. Gostava muito que a vida ainda me proporcionasse essa oportunidade. Se vai ser para já, para o ano, não sei! Mas também ainda tenho 33 anos. Até pode ser aos 50! Eu não tenho problemas com isso. Mas não podemos meter a carroça à frente dos bois. Neste momento estou feliz aqui, e é aqui que quero estar. Mas isto tanto pode durar um mês como durar 10 anos. 

Já disseste que se tiveres de voltar a mudar vais voltar a fazê-lo. O teu sorriso não engana… mas és, sem dúvida, mais feliz hoje do que eras há dois anos, certo?

Sem dúvida, sem dúvida. Claro que antes destas mudanças eu também era muito feliz. E era muito feliz naquela realidade. Porque não conhecia esta realidade que conheço agora. E  até perceber que tinha de mudar eu tinha muitos objetivos, desafiava-me, viajava, estava com amigos. Eu sempre tive muita sede de viver. Depois houve uma altura em que percebi que precisava de algo mais. E foi quando eu percebi: “Espera, se calhar há mais”. Eu não quero ter aquela sensação de picos. Eu queria ser mais feliz, mas ter esse equilíbrio. Ser feliz no dia-a-dia, sem precisar de grandes alaridos. Hoje sinto-me mais verdadeira, realizada. Muito mais em paz. E hoje tenho plena consciência de que isto é um caminho que se faz, sem pressas. Alguma vez a Ana Teresa de há 5 anos dizia que estava no Alentejo, como cozinheira num restaurante de comida alentejana… e feliz? Estou feliz, e está tudo bem. Amanhã logo se vê.

 “A incerteza é a nossa única certeza”

Parecia inatingível, porém 2020 foi o ano de passar o sonho de uma vida do plano das hipóteses para o plano das certezas. Nem uma pandemia impediu a concretização do sonho. Pai, mãe e quatro filhos partiram no início de outubro rumo a uma viagem pelo mundo com duração desejada de quatro anos. Serão quatro anos a ter aulas, dormir, cozinhar e viaja. Tudo em poucos metros quadrados. 

Há 17 anos não se conheciam. Desde então estão juntos, são hoje uma família. Inês Saldanha, de 37 anos, é a mãe desta família que tomou a decisão de seguir um sonho: viver num veleiro e percorrer o mundo. A ideia surgiu quando Inês conheceu João Pisco, de 44 anos, num bar, por quem se apaixonou “loucamente”. Logo nesse dia, perceberam partilhar um desejo: ter muitos filhos (quatro, especificamente) e velejar pelo mundo. A parte dos filhos ficou cumprida há dois anos. Inês e João são hoje pais de quatro filhos: Alice, de 9 anos; Manuel, de 6 anos; Francisco, de 4 anos e Teresa, de 2 anos. Cumprido o primeiro desejo, meteram mãos à obra para cumprir o segundo. Hoje, Inês Saldanha e João Pisco estão a dar a volta ao mundo num barco com os seus quatro filhos. O concretizar de um sonho para o casal, uma experiência de vida ímpar na construção da personalidade e das expetativas para o futuro das quatro crianças. 

Nem um ano tão atípico e marcado pela incerteza impediu a decisão de mergulhar nesta aventura. A primeira paragem da viagem iniciada em setembro do ano passado foi a ilha de Porto Santo. Houve ainda tempo para passar pela ilha da Madeira, seguida das Ilhas Desertas. Como o vento e as condições atmosféricas é quem mais ordena, a ondulação forte trocou as voltas ao trajeto inicial, o que impossibilitou a passagem pelas Ilhas Selvagens. “Isto é uma coisa muito comum”, confirma Inês. “Nós estamos num veleiro, ao sabor do vento. Se o tempo não está bom temos de seguir viagem. Uma travessia que era para ser de um dia e meio foi três. Por isso temos de estar preparados para estas situações. Isto é uma coisa que pode acontecer”, continua.  

Este sonho, há uns anos visto como inalcançável, ganhou expressão em 2020, mas foi o culminar de um longo processo de mudanças que se arrastam há já alguns anos.  João, até então professor de fotografia, teve de abandonar a sua paixão pela fotografia para abraçar outra que falou mais alto. Já Inês não é uma novata nas mudanças radicais, pelo menos ao nível profissional. Após terminar a licenciatura em Serviço Social, começou a trabalhar como diretora técnica num lar de idosos e relembra que, na altura, com um ordenado bem simpático para início de carreira, o seu sonho era aquele e estava a concretizar-se. “Era o meu [sonho] na altura! Eu lembro-me perfeitamente daquele ser o meu maior sonho. E eu consegui, consegui um contrato, como efetiva, a ganhar bem. E despedi-me!”, relembra.  “Eu despedi-me passado um ano e meio porque aquilo não era para mim. E troquei o certo pelo incerto sem problema nenhum, porque eu acredito que quando queremos muito uma coisa nós conseguimos”.

A família apresenta-se na primeira pessoa

As palavras não deixam esconder a determinação que carateriza desde muito a atitude de Inês face à vida. De resto, terá ido buscar muitos desses traços a outra página da história da sua vida. Aos 19 anos, mudou-se de armas e bagagens para o outro lado do oceano, e esteve um ano a viver na Amazónia.  “Essa viagem mudou a minha vida”, diz sem pensar muito. “Eu comi arroz com feijão durante um ano, eu dormi no chão como eles. Portanto, eu vivi um ano a realidade daquelas pessoas a 100%. E isso fez-me perspetivar a vida de uma maneira completamente diferente”, explica. Por isso, percebe-se que o espírito aventureiro é uma marca já antiga na vida do casal. “A ousadia faz parte da nossa vida há muito tempo. Este é só o maior projeto onde nos metemos”. 

O desafio, dizem, é “arrojado” e não é para todos. Também por isso não é de estranhar que histórias como a desta família não sejam propriamente comuns. “É verdade que é preciso ter uma boa dose de loucura. É verdade que é preciso ser destemido, arriscar e ser ousado… Mas também é verdade que os sonhos alimentam muito a nossa vida e este sonho tem-nos alimentado ao longo destes anos”, conta. A preparação, pelo menos a mental, aconteceu nos últimos sete anos e tem alimentado desde então “as nossas conversas, os nossos dias, o nosso propósito. E é tão bom ter um propósito na vida, não é?”.

Embora este sonho esteja bem presente praticamente desde o momento zero da sua vida a dois, uma viagem destas implica, para além de uma preparação mental, uma grande organização e preparação mais logística. Também por isso Inês descarta que a decisão tenha sido resultado de um capricho momentâneo. A vontade de agir, assim como a ousadia, sempre existiram. Porém, colocar em prática este sonho implicou chegarem-se à frente, procurando encontrar novas soluções para aquilo que deixavam para trás. “Isto não é fácil! Tudo isto são anos de trabalho. Ainda bem que não fomos precoces, ainda bem que esperámos e juntámos o dinheiro necessário para fazer tudo como deve ser”, explica. 

“Não mudámos de um dia para o outro. Foi necessária muita preparação”

Estando as quatro crianças em idade escolar, o ensino é uma parte das suas vidas que não pode ser menosprezada. A questão é uma das que mais confusão gera a quem dá de caras pela primeira vez com a história desta família. De resto, a garantia de que os quatro filhos poderiam continuar a frequentar um modelo de ensino, ainda que há distância, foi condição imprescindível para que o plano se tornasse ainda mais viável. Os filhos do casal estão inscritos numa escola internacional, cujo ensino é cimentado num conjunto de projetos ligados à história e à cultura dos locais por onde vão passando. 

Agora, Inês e João, para além de pais a tempo inteiro, são também professores. “Eles estudam consoante o sítio onde estão, para onde vão, e tentamos adaptar as aprendizagens ao máximo face à realidade do sítio onde estamos. Mas claro que é uma forma de aprender muito diferente daquela a que estamos habituados”, explica. Um modelo de ensino que poderá ser prejudicial para as crianças? “Eu não duvido um minuto de que eles aprendem ainda mais, porque eles estão constantemente a absorver coisas novas. Ainda hoje estavam a falar espanhol o dia todo com uma amiga que fizeram na praia! Por isso, para mim o dia está ganho!”

A visão de mãe não deixa de destacar a consciência de que “não são todas as crianças que têm a oportunidade de viver uma experiência destas e tão novos”. Esse olhar diz-lhe que os filhos estão a receber as ferramentas necessárias para que um dia possam arriscar, sem medos, e não tenham peias em ser quem querem ser. “Eles que sejam o que quiserem. Mas que sejam livres dentro deles, nos sentimentos, que vivam e façam aquilo de que gostam, não estando tão presos como nós estamos a uma sociedade tão impositiva”. 

A tarefa é dura, e também serve para mostrar desde logo aos mais novos que nenhuma decisão, seja mais ou menos drástica, é só sinónima de vantagens. As desvantagens e os problemas são muitos, e manifestam-se todos os dias. “Não há nenhum sonho nem nenhuma ideia da nossa cabeça que, na prática, seja igual. A realidade é que trabalhar num barco é duro,  é muito difícil termos água, é muito difícil ir às compras… A realidade não é o sonho idílico que as pessoas idealizam da família bonita. Somos uma família bonita, é certo, somos uma família feliz, também é certo, mas isto é um sonho que tem o seu preço a pagar!”, defende. 

Trata-se, assim, de uma questão de adaptação. E é isso que têm feito nos mais de 100 dias que levam de navegação, sempre procurando ver, à semelhança da postura já partilhada pela Teresa Augusto, o copo meio cheio. “Se agora temos uma pandemia, claro que o circuito que tínhamos traçado provavelmente já não vai ser o mesmo. O grande truque da vida está nisso mesmo. Trata-se de nos adaptarmos e não ficarmos mais tristes por isso. Percebermos. Aceitarmos”. Quanto a uma coisa parece não ter dúvidas:  “Eu já sei que quando for velhota e quiser que eles estejam ao pé de mim em Portugal, estou bem tramada, não é? Já não os vou ter! Mas se eles voarem como eu voei e isso os fizer felizes, eu já fico contente”.

Não foi o receio face ao futuro que os impediu. Não foi a opinião dos outros, inclusive do círculo mais próximo, que os impediu. Não foi sequer uma pandemia que surpreendeu todo o mundo que impediu esta família de fugir àquilo que é visto como normal e concretizar um desejo comum. “É preciso um bocadinho de inconsequência para serem tomadas algumas decisões mais arriscadas e ousadas. Se não o fizéssemos eu não estaria neste momento com o meu marido e os nossos quatro filhos a dar a volta ao mundo num barco”, resume. Para a sociedade, podem ser loucos. Os próprios preferem caraterizar-se como ousados e determinados. Livres, com uma pitada de loucura. “Quando nos chamam de loucos o João então dá uma gargalhada para trás e diz sempre o mesmo, que é: “Loucos são os que ficam cá”. Trabalhar das 9h às 5h? Com 22 dias de férias? Esses é que são completamente loucos! Então isso é que é aproveitar a vida?”. Esta foi a forma que os seis encontraram de aproveitar a sua.

É difícil encontrar a fórmula certa para um conjunto tão diverso de coisas. Não só a melhor forma de aproveitar a vida e tudo aquilo que podemos viver, mas também a melhor forma, por exemplo, de contar uma história. Ao longo desta revista, fizemo-lo. Histórias diferentes, contadas em formatos distintos, mas que têm em comum o facto de representarem decisões acima de tudo individuais, apesar de todas as pressões que existem e que tantas vezes as tentam influenciar. Por isso, no fundo, são histórias capazes de inspirar. Neste projeto, contamos histórias reais. A da Inês, da Teresa, doo João e de tantos outros. Histórias que levamos e que, esperamos, quem conheceu este projeto, também as leve e perpetue na sua vida.