Pressão e Tabu

Pressão? Deus me livre!

Terá a sociedade ideias pré-concebidas no que diz respeito à vida de um padre? E quando a vida que um padre leva é muito diferente daquilo que a sociedade idealiza?

Inês Malhado, Lara Alves, Laura Costa, Mário Silva da Costa

Fomos conhecer a história de Clemilson Bernardes da Silva, de 40 anos, padre diocesano nas paróquias de Corroios e Vale de Milhaços. Ser padre em pleno século XXI é bastante diferente daquilo que era há cerca de 50 anos e, graças a isso, a história que narramos é a de um padre que é uma autêntica caixa de surpresas. 

O homem que nos falou sobre pressão, antropologia, filosofia, arte, desporto e sobre a vida é um emigrante brasileiro que não encarou a devoção a Cristo como um impedimento à perseguição dos seus sonhos: em Portugal alia a vida sacerdotal com o estudo das Belas Artes.  

Infância no Brasil e o primeiro contacto com a vida religiosa

“Aquilo que sou hoje como padre vem de uma caminhada”

Em Três Lagoas, Mato Grosso do Sul, no Brasil, a geração de Clemilson nascia e crescia ligada ao campo. Foi aí que passou a sua infância, voltada para o trabalho. Aos 10 anos, trabalhava durante o dia e o estudo aguardava-o à noite. Mas não era isso que o impedia de ser criança. Clemilson lembra uma infância curiosa, cheia de tudo um pouco, desde o gosto pela pesca ao interesse pelos desportos de combate.

A tradição familiar não era católica. No final dos anos 80 e início da década de 90, numa aldeia isolada sem uma igreja católica por perto, pouco a pouco a sua família seguiu pelo caminho do protestantismo.

(Da direita para a esquerda) Clemilson com os irmãos, Claudemir, Clodoaldo e Carlos, e com a mãe, Marlene Silva, no Brasil, maio de 2018 // Fotografia cedida por Clemilson Bernardes

Clemilson acredita que o sacerdócio nasce das famílias. O seu caso foi, por isso, desafiante: «Não existe uma resposta definitiva na vida de ninguém. Tudo está sujeito à dúvida, tudo está sujeito às diversidades da vida. Aquilo que sou hoje como padre vem de uma caminhada», conta.

Na sua adolescência, agia com desinteresse pelas questões religiosas. Até ao dia em que mudou de bairro. O que Clemilson não sabia é que aí contactaria pela primeira vez com o catolicismo. Primeiro, começou a ir à missa com o seu novo grupo de amigos, vindos de famílias católicas. Depois, no bairro envolveu-se também em ações de apoio a idosos, a pessoas em situação de sem-abrigo e a todos os carenciados. A condição imposta pelos pais destes jovens era simples: ajudar os outros para depois poderem sair aos fins de semana. Enquanto fazia a diferença na vida das outras pessoas, Clemilson tentava encontrar o seu lugar no mundo.

Nessa fase mais tranquila da sua vida, sob aquele sentimento de pertença à comunidade, brotou o entusiasmo pelo catolicismo e pela Igreja. Por volta dos 17 anos, aceitou o convite para fazer parte do movimento da Renovação Carismática Católica, oriundo dos Estados Unidos, que chegou ao Brasil com o intuito de combater a queda do número de católicos no país. 

A semente dos valores cristãos, plantada pelos amigos do novo bairro, deu frutos. Foi uma pergunta inscrita num calendário que fez despontar na cabeça de Clemilson a hipótese do sacerdócio. A questão era: «Já pensaste ser padre?». Não, nunca tinha pensado. O dia era 3 de outubro, data que assinala a morte de São Francisco de Assis.

Se foi obra do Espírito Santo? Clemilson acredita que sim. O jovem, inspirado pelos valores franciscanos da pobreza e da ajuda ao próximo, pôs a vida em perspetiva e decidiu que aquele era o caminho. Hoje, afirma: «fazer a diferença na vida das pessoas era tentar encontrar-me neste mundo». Esteve oito anos no seminário onde estudou filosofia e teologia, para, em 2008, ser ordenado na igreja que se tornou casa.

Desempenhou o seu primeiro período como padre na Diocese de Três Lagoas. Além disso, assistiu também as paróquias de aldeias e vilarejos em torno da cidade e de outras vizinhas.

A vinda para Portugal

A arte é uma das outras paixões de Clemilson. Em 2013, o bispo da diocese de Setúbal, João Gilberto, autorizou a vinda de Clemilson para Portugal. O padre atravessou o Oceano Atlântico para estudar artes na Academia de Belas Artes de Lisboa. No mesmo ano, passou a exercer o cargo de Padre na Paróquia de Corroios, em Almada, no distrito de Setúbal. 

Exterior da Igreja de São João Batista de Vale de Milhaços // Créditos Black&Lime

Após alguns anos a exercer em Portugal, foi nomeado Padre da Paróquia de São João Batista, em Vale de Milhaços, a 15 de setembro de 2019, onde permanece até hoje. Aqui começou a contactar mais com os jovens da Comunidade.

Primeira missa de Clemilson como padre de Vale de Milhaços (último à direita), 5 de setembro de 2019 // Créditos Grupo de Jovens Fénix

O investimento noutras paixões que o tornaram num padre diferente

É através da pintura que retrata a sua crença. No 8º ano de escolaridade, descobriu a iconografia da Rússia Antiga. “Fiquei tão encantado com a imagem da Virgem Maria num dos livros que comecei a fazer os meus primeiros desenhos baseados numa iconografia. Daí para a frente, eu comecei a trabalhar a arte voltada para o fenômeno religioso”, conta Clemilson.

Autodidata, foi evoluindo com o tempo ao ler livros e a experimentar diferentes estilos. Levou a pintura consigo para o seminário, onde lhe dedicou algum do seu tempo. A aposta numa vertente mais profissional da pintura foi possível com a mudança para Portugal. Para além da ocupação na Igreja, Clemilson estudava simultaneamente no curso de Pintura na Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa. Recentemente licenciado, é numa página do Facebook que continua a partilhar algumas das suas peças de arte. Para além dos trabalhos com que vai enchendo o seu ateliê, Clemilson pintou frescos na Igreja da Sagrada Família de Vila Nova da Caparica, em Almada.

O que é que gosta de fazer na sua vida que acha que as pessoas encarariam como surpreendente? Clemilson responde satisfeito: «Sempre fui dado às artes marciais». Começou por praticar muay thai durante sete anos no Brasil. Tem cinco graduações na modalidade. Quando se mudou para Portugal inscreveu-se na turma de jiu-jitsu da zona, onde luta há cinco anos, e hoje já é cinturão azul.

Clemilson com a sua turma de jiu-jitsu da Escola Gracie Barra (da direita para a esquerda, segunda pessoa da fileira de baixo), 2017 // Fotografia cedida por Clemilson Bernardes

Para além de Clemilson existem outras pessoas que ocupam lugares de destaque social na turma de jiu-jitsu. Uns são médicos, outros advogados e ele é padre, mas garante que dentro do tapete “há muita disciplina”. Existe o respeito e o distanciamento necessário para haver luta. 

Pressão? Deus me livre!

A escolha de Cristo não foi complicada. Muitos dos amigos da sua juventude optaram pelo mesmo caminho. Complicado foi o que se seguiu. O padre confessa que “nos primeiros anos de profissão é muito comum sentir a pressão de ter de corresponder às expectativas de toda a gente”, mas com o passar do tempo essas coisas começam a ser desvalorizadas.

Ângela Dias, psicóloga no Hospital da Misericórdia de Évora, dá consultas há dez anos e afirma que problemas derivados da pressão social são comuns entre os pacientes. A especialista explica que “faz parte da natureza humana procurar corresponder àquilo que os outros esperam porque existe uma necessidade de sermos bem vistos”. 

Em relação ao padre, específica que, por ser uma figura de destaque está mais exposto às opiniões alheias, a pressão e as críticas podem surgir quando a sua conduta “foge àquilo que a Igreja preconiza”. Contudo, “o sacerdote tem o direito de seguir com a sua vontade e não deixar que a pressão imposta modifique as suas escolhas. Se cedesse à pressão estaria a ir contra a sua vontade e, se calhar, iria ser um padre menos realizado e motivado”, acrescenta Ângela Dias.

Clemilson vê na maturidade uma das principais armas para combater a pressão imposta pela sociedade. Segue os exemplos católicos e é na figura de Cristo que mais se inspira. “É preciso reconhecer quem és para lidar com as adversidades. Jesus é um homem tão seguro de si que não se sente pressionado pela sociedade local para entrar na casa de um pecador, para tocar numa prostituta nem para almoçar com um cobrador de impostos. Quando tu és seguro de ti, algumas coisas começam a passar ao lado”, explica o padre.

Aos 43 anos, admite lidar com o olhar constante da crítica com uma alma de velho: não quer saber. É desconfortável, mas momentâneo. Acaba por passar. A desvalorização da opinião alheia torna-se fácil, isto porque a maior parte das pessoas que lhe apontam o dedo, são aquelas que não vão à missa nem à igreja: “Geralmente são as pessoas de fora que mais criticam. Acham-se especialistas em tudo, até nas coisas em que não acreditam.  Pensam que conhecem o catolicismo, mas não conhecem nada. Querem sempre meter o dedo na vida do outro”.

Acrescenta ainda: «Encontrei mais gente moralista fora da igreja do que dentro da igreja. Gente muito mais preconceituosa e radical fora do que dentro. Mas é muito engraçado porque eu estudei oito anos a doutrina e sou representante da mesma, mas a pessoa acha que sabe mais do que eu». Clemilson reconhece que nestas últimas décadas a forma de encarar o sacerdócio mudou bastante. Diz-se ser padre, mas também um cidadão normal que aprendeu a lidar com a crítica.

Mudança de perspetiva sobre o papel do padre na sociedade 

“A religião vai-se moldando de acordo com a necessidade do tempo”

De que modo foi renovado o papel do padre para que esta figura tenha outras ocupações para além do trabalho religioso? Clemilson é um padre que mostra como a Igreja católica se adaptou aos dias modernos. “Existiu uma igreja, a São de Bispos, igreja dos apóstolos. Depois apóstolos e diáconos, depois só bispos. Depois apareceu o presbítero com a cristandade, um bispo incompleto que vai dar origem ao padre. A religião vai-se moldando de acordo com a necessidade do tempo“, explica. 

Segundo um estudo de 2019, Igreja Católica, sociedade e Estado em Portugal no século XX, do especialista em História e Teologia das Religiões e professor na Universidade Católica Paulo Fontes, é a partir do século XIX que emerge um novo modelo de relação entre o catolicismo e a sociedade. Até então, a missa era celebrada em latim e de costas para a plateia. Após a Primeira Guerra Mundial, marco transformador do século XX, surge a necessidade de se reorganizar o diálogo do mundo católico com outras igrejas cristãs, como as protestantes, e com diferentes religiões. O Concílio Vaticano II, convocado pelo papa João XXIII, ocorreu em outubro de 1962 e assinalou a terceira grande reforma pela qual a Igreja Católica passou. O seu impacto sentiu-se dentro e fora da instituição e refletiu-se principalmente na forma como a Igreja se aproximou dos fiéis e se abriu à sociedade moderna.  

Para o católico comum, a renovação significou um envolvimento mais ativo na celebração das missas. No panorama geral, representou ainda um momento de divisão entre os progressistas católicos, que apoiaram desde o início as decisões tomadas no Concílio, e os conservadores católicos, que temiam a diluição da identidade da Igreja. A religião deixa de ocupar um lugar central na vida social e interliga-se com as demais esferas desta: «da economia ao direito, da ciência à moral, passando pela organização política das sociedades nascidas das revoluções modernas», explica Paulo Fontes.

Passados mais de 50 anos, a mudança na nova relação da Igreja com o mundo exterior, apesar de lenta e gradual, faz-se sentir e caracteriza-se pela defesa do pacifismo, da união e do respeito pela liberdade religiosa e de opinião. Estes princípios foram ainda reforçados com a Teologia da Libertação, originária da América Latina e consequência do Concílio do Vaticano II, onde a causa dos pobres e a esperança de um mundo em que é possível viver em comunidade, apesar de todas as divergências políticas, sociais e religiosas, são a principal prioridade.

Clemilson é um padre herdeiro dessa abertura. Contudo, os tempos que se seguiram ainda testemunharam algumas alterações. O padre exemplifica: “Há algumas décadas era tudo muito mais voltado para os escritórios, para a sacristia. Hoje, os padres já são mais jovens e têm uma forma diferente de lidar com a comunidade. O próprio jovem deste século é diferente. Por isso alguns padrões foram mudando”. As palavras do padre são o espelho da ação do Papa Francisco, o papa pelos jovens, o papa pela mudança. “É necessário que a Igreja não esteja demasiado debruçada sobre si mesma, mas procure sobretudo refletir Jesus Cristo. Isto implica reconhecer humildemente que algumas coisas concretas devem mudar”, escreve Francisco aos jovens em 2018.

Padre Clemilson com a camisola do Grupo de Jovens da Paróquia de Vale de Milhaços, em 2020 // Créditos Grupo de Jovens Fénix

A mudança não se faz sentir da mesma maneira em todo o mundo. Clemilson compara a sua experiência nos dois países de língua portuguesa: em Portugal reconhece que o comportamento individualista dos seguidores católicos influencia o seu papel nesse sentido, enquanto que no Brasil o contacto é mais próximo, assim “o padre brasileiro do interior é um padre virado para as famílias e para as casas”. 

A visão externa sobre as escolhas do padre

Clemilson conta que todos os dias acaba por chocar com alguns fiéis mais conservadores. 

Dona Teresa Aurélio (como é conhecida entre os fiéis), de 71 anos, pertence à comunidade de Vale de Milhaços há 40 anos. Para além de prestar apoio na preparação da eucaristia, é ministra da comunhão e faz a preparação para os batismos. Durante esse tempo, acompanhou os vários padres que por ali passaram. Embora reconheça que cada um tem um método de trabalho próprio, essa foi a razão que motivou alguns atritos no início da relação. Com o passar dos meses, o sacerdote começou a enquadrar-se nos costumes da casa e a relação entre ambos acabou por melhorar. 

Ao que à vida do padre diz respeito, a ministra da comunhão confessa não saber muito. “Não conheço a experiência dele ao longo da sua vida, mas dá-me a ideia de que ele sempre esteve ligado aos assuntos da Igreja. E que estudou sempre dentro desta norma. Agora de resto não sei qual foi o ambiente dele até vir para aqui”, conta. Dá ainda a entender que o contacto que mantém com o sacerdote se restringe aos assuntos relacionados com a igreja. 

“Nós temos uma veste própria. Apesar de ele ser sempre brincalhão, quando tem o kimono vestido é dedicado.  Separa literalmente o trigo do joio

André Gonçalo é o instrutor de jiu-jitsu da turma de Clemilson. Para descrever o padre recorre a substantivos como discrição, descontração e boa disposição. Foi só duas semanas depois de as aulas começarem que André descobriu a profissão de Clemilson. Conta que quando o viu pela primeira vez, pensou simplesmente “olha, pronto, mais um aluno”. 

Dentro do tapete cada um ocupa o seu lugar. O respeito entre os dois, aliado à disciplina que a modalidade impõe, possibilita a distinção de papéis. “No tapete foi sempre o tu, cá fora sempre foi o você. Até porque com o respeito e carinho gradual que fomos nutrindo um pelo outro, ficou mais lógico reconhecer a pessoa cá fora como ‘o senhor padre’, e lá dentro continuar a ser uma coisa corriqueira, uma coisa mais informal”, explica André. 

A amizade já conta com mais de quatro anos. O instrutor afirma que o padre está sempre pronto a ouvir e aconselhar sem que haja necessariamente uma vertente religiosa no conselho. Reforça que a boa disposição de Clemilson lhe dá “uma camuflagem maravilhosa, porque se consegue adaptar perfeitamente ao mundo ao seu redor”.

“Estou aqui como estudante, não estou aqui como padre”

Nestes últimos cinco anos da licenciatura, a rotina de Clemilson traduzia-se uma correria entre a paróquia e a faculdade. Durante os estudos, um período que lhe exigiu muito esforço e trabalho, sempre se identificou enquanto um estudante “normal” como os restantes. Por saber distinguir essas duas partes da sua vida, foi apenas no 2º ano do curso que os seus colegas ficaram a conhecer a sua profissão. “Estou aqui como estudante, não estou aqui como padre”, sublinha.

Clemilson junto a um dos seus quadros, exposto na Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa, dezembro de 2019 // Fotografia cedida por Clemilson Bernardes

Reconhece que sente uma diferença de como colegas crentes e colegas não religiosos olham para si. “Quando as pessoas descobrem que sou padre, se forem simpatizantes da religião olham para mim de forma simpática, se forem anti-religião imaginam logo que vou tentar catequizá-las e transformá-las em cristãos. Esquecem-se que a universidade é muito cara para vir para aqui catequizar. Para isso já tenho a paróquia”, ironiza.

Confessa que, por vezes, dentro da faculdade, se sentia alvo de um certo preconceito. “Somos uma classe que pede respeito e dignidade pelas minorias, mas ao fim e ao cabo acabamos por nos tornar numa minoria porque a minha profissão tem a questão do peso moral. Esse peso moral faz com que as pessoas achem que vamos estar sempre acima da lei ou a impor a lei sobre elas. Muito pelo contrário. Eu venho para estudar”.

Para Diogo Pereirinha, colega de curso de Clemilson, o padre foi um dos seus primeiros amigos da faculdade. Antes de Clemilson lhe relevar que é padre, Diogo já desconfiava. Por ser também católico, e já bastante próximo de Clemilson, Diogo sente que esse facto só mudou a amizade entre os dois para melhor.

Quanto à visão dos outros colegas, o jovem reconhece que para muitos a estranheza não reside na profissão de Clemilson, mas sim na diferença de idades entre eles. “Sinto que para muitos ele pode parecer irritante por ter um sentido de humor mais envelhecido, menos próprio em certas instâncias”. Diogo não vê como é que o facto de o seu colega ser padre possa influenciar a sua prestação escolar: “Sempre foi um colega incrível, muito amigo, preocupado e atento”, descreve.

Quanto ao futuro, o sacerdote tenciona cruzar a caridade com a arte. O plano de Clemilson passa pela criação de projetos sociais que ajudem pessoas desfavorecidas a contactar com as artes. “Acredito na arte enquanto instrumento transformador social. É algo que atinge todos os povos, independentemente da classe económica e da religião“, conclui.