Tempo

Quando os olhos não veem, mas o coração sente

“Os bebés têm tendência a esticar o braço para alcançar um determinado objeto. A Mariana não fazia isso.” Foi este um dos motivos que levou Cristina Silva, a mãe, a procurar ajuda médica.

Ana Beatriz Cardoso, Beatriz Lourenço, Maria Peleira Gouveia e Mariana Lucas

Mariana Lucas era, aos olhos dos pais, um bebé normal. Em casa interagia, ria e fazia tudo o que era esperado na sua idade. Quando entrou para a creche ABEI (Associação para o Bem-Estar Infantil), em Vila Franca de Xira, aos quatro meses e meio, percebeu-se que algo não estava bem: não reagia aos estímulos das auxiliares. Estas transmitiram, posteriormente, essa informação aos pais, que descobriram pouco tempo depois que a filha tinha elevados problemas de visão. Com um ano, já usava óculos graduados e também óculos escuros devido à fotossensibilidade. Cedo se percebeu que este não era o único problema e Mariana foi reencaminhada para outras especialidades. Em cima da mesa esteve a hipótese de ser cega ou de ser autista.

O Diagnóstico

“Quando vi a Mariana, ela já tinha os problemas oculares (…) achei que ela era muito gordinha, tinha obesidade e (…) já tinha resistência à insulina”. Depois de passar por inúmeras especialidades, Mariana conheceu a médica que a acompanharia durante toda a infância no Hospital Dona Estefânia – Lurdes Lopes. Esta despistou de imediato doenças caracterizadas por atrasos no desenvolvimento cognitivo, uma vez que tal não se verificava. Foi através de um caso similar que a endocrinologista chegou à hipótese de diagnóstico que, mais tarde, com a realização dos devidos testes, acabou por se confirmar: Mariana é portadora da Síndrome de Alström.

“Ainda hoje estou a digerir o diagnóstico, (…) foi um choque total”

Cristina, mãe de Mariana

A síndrome de Alström

Foi com dois anos e meio de idade que Mariana descobriu que uma doença hereditária genética rara a acompanharia para o resto da vida. Caracterizada pela falência progressiva de algumas faculdades, a síndrome de Alström pode causar cegueira progressiva, obesidade, diabetes tipo 2 e perda de audição. Para além destas, que são as manifestações mais comuns, pode ainda ocorrer insuficiência renal e cardíaca, escoliose e hipotiroidismo.

Mariana aos três anos

“Num universo tão grande, qual é a probabilidade de eu e o pai termos o mesmo gene?”

Cristina, mãe de Mariana

Todos nós temos um código genético que nos define. Esse código está contido nos genes que cada um de nós tem. Existem genes dominantes e genes recessivos. São os genes recessivos que causam as doenças hereditárias recessivas.

Quando se juntam os genes do pai e da mãe poderá haver a junção de dois genes dominantes, de gene dominante com gene recessivo ou de dois genes recessivos. Sendo assim, há 25% de probabilidade de não ter doença nem ser portador, 50% de não ter doença mas ser portador do gene e 25% de probabilidade de ter a doença.

Esquema de transmissão genética de um gene recessivo

Tanto a mãe de Mariana como o pai descobriram-se portadores do gene, ainda que não tenham a doença. A sua primeira filha, Patrícia, não a tem nem é portadora do gene. Havia 25% de chance de Mariana, a segunda filha, nascer com a síndrome. “Sentia-me, ainda hoje me sinto, aliás, culpada” – Cristina.

Como é que será viver sabendo que, dentro de anos, meses ou até dias, poderemos perder para sempre o sentido que nos guia?

“No meio de aceitações e rejeições aprendi o braille”

Com um diagnóstico em mão, e a consequente certeza de que a visão de Mariana tinha os dias contados, a mãe viu-se obrigada a pensar com antecipação no futuro da filha, a estar sempre um passo à frente. “Tive de arregaçar as mangas e andar para a frente para a Mariana ser alguém”. Para que isso acontecesse, procurou as melhores escolas que pudessem ajudar a filha a evoluir. Assim, com seis anos, Mariana entrou no Colégio Helen Keller – uma escola situada no Restelo com um ensino adaptado para cegos e pessoas com baixa visão.

“Eu já sabia (…) Sempre fui avisada desde pequenina de tudo o que me poderia acontecer, desde a perda de visão, audição, da diabetes, de tudo…”. No colégio aprendeu a ler braille – sistema de escrita tátil utilizado por pessoas cegas ou com baixa visão; a usar a bengala – aquilo que mais lhe custou por ainda não ter cegado totalmente e por isso não sentir necessidade; e a usar computador e telemóvel com leitor de ecrã adaptado – algo que lhe viria a facilitar os estudos. Todas estas aprendizagens antecipadas foram fulcrais para que mais tarde pudesse levar uma vida o mais normal possível. Já que não podia lutar contra o tempo, Mariana teve de se agarrar ao tempo que tinha.

Enquanto se preparava para perder a visão, outros sintomas foram surgindo. Aos oito anos, na escola, percebeu-se que confundia alguns sons: tinha começado a perder a audição, sendo obrigada a usar aparelhos auditivos, cuja adaptação, lembra, foi rápida e fácil.

Mariana quando completou oito anos

Com a mesma idade começaram a aparecer sinais de acantose nigricans – manchas escuras que podem surgir na pele, principalmente no pescoço e axilas – que no caso de Mariana surgiram devido à resistência à insulina. Depois de muitas análises e vários testes descobriu que era pré-diabética. Todos estes problemas eram dificultados pela limitação visual. Ainda que já existam dispositivos capazes de facilitar a injeção de insulina, a maioria serve-se de um ecrã inacessível a deficientes visuais, dificultando aquilo que já era um problema por si só.

“Tive uma preparação que me ajudou, mas mesmo assim acho que não estava preparada.”

Mariana

“Lembro-me perfeitamente, 10 de fevereiro de 2016”

Nos últimos meses no Colégio Helen Keller, quando tinha 14 anos, Mariana sofreu a reviravolta. Nada no mundo a teria preparado para aquele momento, de dia 10 de fevereiro de 2016, quando, “de repente, tudo ficou escuro”.

Eram 19h da quarta-feira seguinte ao Carnaval. Mariana, na altura com 3% de visão, estava deitada na sua cama a ouvir música, único lugar no qual se sentia confortável devido às fortes dores de cabeça que vinha sentir desde há uns dias. Foi tudo uma questão de segundos: num momento sentiu luzes muito fortes nos olhos e no momento a seguir o mundo perdeu a cor. A mãe chamou-a para jantar e foi aí que Mariana percebeu: não conseguia andar, não conseguia encontrar a saída do quarto. Quando finalmente chegou à cozinha tentou olhar para a mãe e não foi capaz. “A luz tinha acabado”.

“Senti que me tinha caído tudo, que já não tinha futuro”.

Mariana

Os primeiros tempos foram muito complicados. Foi difícil para Mariana aceitar esta condição. Sentia que “tinha batido no fundo”. Alguns pensariam que, por já ter uma percentagem de visão tão baixa, não notaria sequer diferença, mas isso não aconteceu, pelo contrário. Mariana descreve este momento como uma das piores situações que a síndrome lhe trouxe; além da perda total de visão, sofreu uma consequente depressão e foi internada três vezes na pedopsiquiatria. Reconhece que o período de adaptação foi fulcral: se não fossem os professores no primeiro ciclo a ensinar a escrever e a ler em Braille, a usar a bengala e o computador, Mariana teria de aprender a viver do zero.

“Temos de aceitar a vida que temos e a vida que nos dão. Às vezes a parte difícil da cegueira é essa: aceitar que perdemos este sentido, mas que podemos viver e ‘ver’ com os outros sentidos”

Mariana

Mariana no ano em que cegou

Suporte Básico de Vida, uma questão de tempo

O apoio incondicional da mãe foi o suporte de que Mariana precisava para ter a coragem e a determinação para encarar a doença de frente.

“A minha mãe nunca me escondeu nada, sempre me acompanhou em tudo, não tenho razão de queixas; a minha mãe é a minha heroína, é a minha companheira, de batalha, de luta; porque para mim todos os dias são uma luta

Mariana

Mariana com a mãe, em junho de 2022

O conhecimento prévio da doença permitiu à Dra. Lurdes Lopes inclinar-se para um possível diagnóstico. “Já tinha sido referenciado um caso que tinha esse diagnóstico como hipótese. Foi por eu conhecer a síndrome a partir desse caso que consegui lá chegar”.Conhecer a síndrome e saber quais são as manifestações tem uma grande vantagem: permite-nos ser pró-ativos, tentar fazer o diagnóstico daquilo que se sabe que são complicações antes de as coisas acontecerem. “Tem de se estar, como se costuma dizer, em cima do acontecimento”.

Os outros problemas associados à síndrome podem ser controlados: por insulina – no caso da diabetes – ou por aparelhos auditivos – no caso da perda auditiva, havendo ainda a possibilidade de colocar implantes. Falando da visão, uma vez perdida não há como voltar atrás. Por essa razão, a Alström é uma corrida contra o tempo para não deixar escapar nada. “É tentar ganhar tempo ao tempo” e aproveitar o tempo que se tem.

Como viver para além da doença quando a doença toma conta da nossa vida? Como continuar a viver quando a vida parece ter acabado ali?

A (minha) vida não acabou ali

Por Mariana Lucas

Aquilo que eu mais quero fazer com a minha vida é seguir os meus sonhos, tentar mudar o pensamento um pouco preconceituoso que existe sobre a cegueira e demonstrar que com força de vontade tudo pode ser possível de alcançar. O importante é não desistir quando nos cortam as pernas.

A música

É preciso recuar um pouco no tempo para falar sobre este assunto. No primeiro ciclo as coisas corriam bem: tinha boas notas e bons amigos, mas foi quando começaram a surgir os problemas auditivos e me vi obrigada a usar aparelhos auditivos, que exigiram um período de adaptação. Eu tinha o grande desejo de aprender piano. Então, fui a todas as escolas da área mas todas me rejeitaram. Diziam coisas como: “ela não vê como vai conseguir ver as pautas?”; “se não vê como é que vai saber as posições das notas?”. Demonstravam uma grande falta de vontade. Pairava a desinformação e o preconceito de que os cegos são uns coitadinhos que não são capazes de fazer nada.

Os professores de ensino especial, cientes da situação, tentaram ajudar mas sem efeito. Parecia que não havia uma solução. Nas aulas de Educação Musical quem fosse cego quase não fazia nada, mas, como eu ainda tinha 3% de visão e o quadro era a giz, ou seja, conseguia distinguir o que estava escrito e o que era o quadro, conseguia participar um pouco.

Mais tarde, quando já estava no secundário, recebi uma chamada da professora de ensino especial do Colégio Helen Keller a convidar-me para uma sessão de apresentação de um projeto de música para pessoas com baixa visão e cegos. Eu não podia perder esta oportunidade.

Mariana a tocar saxofone

Fui e de lá não saí mais. São já quatro anos a aprender música e a tocar saxofone. O projeto chama-se “Filarmónica Enarmonia” e consiste em aprender a teoria e a escrita musical, tocar um instrumento e ter aulas de conjunto. Esta banda é constituída por instrumentos de sopro como o saxofone, o trompete ou o clarinete e por percussão. Aqui tive a oportunidade de aprender tudo aquilo de que precisava para tocar um instrumento, a ler as pautas, a memorizar – um trabalho efetuado por professores com vontade e disposição para procurar novos métodos de ensino e poderem fazê-lo sem medos.  Esses métodos foram todos baseados no Braille e na Musicografia em Braille (escrita da música em Braille).

Quadro básico de Musicografia Braille.
Mais informações sobre musicografia em Braille podem ser consultadas aqui.

O jornalismo

Quando tinha 3 anos comecei a ver notícias na televisão e a assistir a diversas modalidades desportivas, assim como relatos dos jogos na rádio – principalmente os de futebol – enquanto ficava deitada numa manta de trapos com o meu avô. Foi a partir daí que comecei a fazer relatos de jogos no meu quarto. O gosto pela área infiltrou-se tanto em mim que, com seis anos, disse ao meu avô que iria fazer de tudo para um dia ser jornalista.

O sonho era tão grande que, enquanto frequentava um curso profissional de programação, fui estagiar para uma rádio, ao mesmo tempo que estudava para os exames nacionais para tentar entrar na faculdade. Nesse ano não tinha muita esperança em conseguir entrar por as médias de entrada serem muito elevadas e por isso estava com algum receio. Mesmo assim o sonho tornou-se realidade; quando saíram os resultados estava na República Checa e na verdade quando recebi a mensagem, “Bem-vinda ao Politécnico de Lisboa”, a felicidade era tanta que tive de ir logo verificar se este sonho se tinha tornado realidade. Era oficial: Eu tinha entrado na licenciatura de Jornalismo!

Como tudo na vida, esta conquista trouxe alguns pontos positivos e negativos. A maior parte dos professores acabaram por complicar as coisas, de forma que eu tenho de despender de várias horas com a ajuda da minha mãe para adaptar as sebentas. O facto de ainda precisar de ajuda para poder ter maior êxito nas unidades curriculares é algo que me faz sentir um pouco dependente.

Os pontos positivos foram muitos mais, felizmente. Senti uma grande união na turma que frequento. Existe uma grande entreajuda e colaboração para que tudo corra bem. Mas a maior conquista foi a minha independência. Independência no sentido de andar sozinha, de fazer as coisas por mim mesma. Esta sim foi a minha maior alegria. Para muitos pode parecer estranho, mas para um cego a independência é uma luta que exige muita força, coragem e vontade.