Revolta

«Ah! É isto. Eu não sou uma pessoa completamente louca»

Apenas 14 dos 195 países do mundo reconhecem o género não-binário. Portugal não é um deles. A maioria das sociedades ocidentais é ainda regida por um binário de género muito marcado. Nesta reportagem, vamos ao encontro da experiência de pessoas que saíram desse binário, existindo além dele. Procuramos perceber o pensamento de quem transgride as normas de género.

Gabriel Miraldo, Mateo Costa

A identidade queer como espaço de revolta

Somos ainda ignorantes acerca de conceitos que usamos diariamente como sexo e género. É necessário ter consciência de que estes conceitos são complexos e que, ao contrário daquilo que sempre nos ensinaram, não são tão simples como falar de preto e branco. Existe a hegemonia, por vezes erradamente apoiada na Biologia, de que sexo e género são sistemas binários. Não são. A Ciência, a Sociologia, e outras áreas do saber afirmam precisamente o contrário.

Utilizar somente o sexo biológico para falar sobre identidade de género4 é incorreto e redutor. Quando nos referimos a sexo, é comum reduzir a nossa perceção acerca deste conceito ao sistema reprodutor de cada pessoa ou à combinação dos cromossomas. Contudo, sexo é o nome que se dá ao conjunto de fatores biológicos que nos ajudam a diferenciar fisicamente: as nossas características físicas, os cromossomas, a expressão genética, as hormonas e a anatomia de cada corpo. Um exemplo de que sexo não é um binário é o de pessoas intersexo5.

O conceito de identidade de género pode ser definido como a relação complexa entre três dimensões: o corpo, a perceção social de cada pessoa e a própria experiência de identidade de género. Portanto, tem que ver com o sexo, representado pela dimensão corporal da identidade, mas não só.

A identidade de género é, na maioria das vezes, imposta à nascença e de acordo com o sexo biológico, não abrindo espaço para a autodeterminação do género. Às pessoas cuja identidade de género corresponde ao sexo definido à nascença dá-se o nome de cisgénero1. Desta forma, às pessoas cuja identidade de género não corresponde ao sexo definido à nascença dá-se o nome de transgénero11.

A palavra transgénero, vulgarmente referida somente pelo prefixo trans11, é um termo abrangente que engloba — dentro do grupo de pessoas que não se conformam com o género que lhes foi imposto à nascença — identidades de género binárias e não-binárias. Dentro deste grupo, existem pessoas para quem faz sentido continuar a pertencer a um binário de género. As pessoas trans binárias identificam-se com o sexo oposto daquele definido à nascença: mulheres trans e homens trans.

Para as pessoas trans não-binárias, não faz sentido pertencer a um binário de género, ou seja, identificar-se como homem ou mulher. As pessoas não-binárias veem género como uma espécie de espectro. Têm, por isso, formas únicas de experienciar o género. Daí existirem diversas categorias para várias experiências de género.

Algumas pessoas não-binárias têm uma identidade de género que combina elementos da masculinidade e da feminilidade, outras cuja identidade de género transcende os conceitos de homem ou mulher, e ainda pessoas cujo género muda com o tempo e a experiência. Dentro deste grupo, também existe quem não se identifica com nenhum género, ou seja, experienciam uma ausência de identidade de género.

Trans, a revolta de existir contra a norma

O termo queer foi introduzido na língua inglesa por volta de 1500, com o sentido de «estranho, peculiar, excêntrico, esquisito», e possivelmente deriva do baixo alemão queer «oblíquo, fora do centro». Há 500 anos que a palavra queer é usada para descrever a margem, o que está afastado do centro, o que é marginalizado — no fundo, o que não é normal. A identidade queer foi sempre marginalizada porque foi sempre anormal ao centro da sociedade: a heteronormatividade.

A Revolta de Stonewall é ainda hoje lembrada como o romper da marginalização da identidade queer. Há 54 anos, em junho de 1969, a polícia de Nova Iorque invadiu o Stonewall Inn, um clube noturno queer localizado em Greenwich Village, na cidade de Nova Iorque, arrastando funcionários e clientes para fora do bar.

Esta intervenção policial originou seis dias de protestos e confrontos violentos com a polícia do lado de fora do bar na Christopher Street, nas ruas vizinhas e nas proximidades do Christopher Park, e a resistência e a revolta queer personificadas na defesa daquele bar, e no direito de ocupar o espaço que lhes pertencia. A Revolta de Stonewall serviu como um catalisador para o movimento pelos direitos das pessoas queer nos Estados Unidos e em todo o mundo.

Todavia, não estamos a falar somente de revoluções populares. É importante entender o que é, ou o que pode ser, a revolta. O Dicionário Priberam da Língua Portuguesa define revolta como uma «grande perturbação moral» e um «sentimento de reprovação». A identidade queer evoca este sentimento quando transgride o ideal de género e de sexualidade: para estas pessoas, a heterossexualidade e a binariedade de género já não fazem sentido como padrão a seguir.

As pessoas transgénero e não-binárias são vítimas de uma invisibilidade sistémica que beneficia a cisnormatividade. Em 2022, segundo dados do Equaldex, uma base de conhecimento colaborativa para o movimento LGBTQIA+, apenas 14 dos 195 países do mundo reconhecem o género não-binário. Portugal não é um deles. A existência de pessoas não-binárias não é reconhecida pela lei, obrigando-as a existirem além dela. Por consequência, são marginalizadas e ainda hoje, passados tantos anos de luta pelo simples direito a existir, o debate da ideologia de género — presente nas colunas de opinião de vários jornais e outros meios de comunicação — tenta atrasar este processo e descredibilizá-lo.

A ignorância é na maior parte das vezes o motor da discriminação. Existe a necessidade de algumas pessoas tentarem apagar o desconhecido, o que é diferente e o que foge da hegemonia. É essencial compreender que ser-se diferente não significa impor a diferença, mas sim proclamar o espaço a que se tem direito. Como consequência, a ignorância resulta na ostracização do pensamento queer e da experiência queer. Não é concedido um espaço seguro para as pessoas transgénero existirem, nem o seu lugar de fala é legítimo.

Ana Rita Santos

Os valores da Democracia evocam um pluralismo de ideias. A Revolução de Abril marcou o início do longo caminho para atingirmos este pluralismo de ideias. A Constituição da República Portuguesa consagrou a dignidade de todas as pessoas, independentemente do seu sexo, género, etnia, e classe social. Marginalizar quem pensa diferente é uma das formas de cessar o progresso. A sociedade tem o papel fulcral de proteger quem se diferencia, mesmo representando uma minoria. Como forma de desmistificar mitos ou equívocos que possamos ter acerca da nossa sociedade e da comunidade que nela formamos, fomos ao encontro da Sociologia através das palavras de Ana Rita Santos.

Quem define as regras da nossa sociedade? Tem a sociedade um papel essencial na construção da nossa identidade? É o género uma construção social? As ciências sociais tentam dar resposta a estas e outras perguntas.

Ana Rita Santos é aluna do Mestrado em Sociologia do Género e da Sexualidade na Universidade do Minho. Considera que a revolta surge como «uma forma de resistência a tudo o que nos foi incutido antes». Desde o nascimento de uma criança que o sistema binário de género está presente em praticamente todos os domínios da vida.

Ana Rita Santos afirma que se está a começar a perceber que género, como está definido atualmente, «é um conceito que mais do que organizar a sociedade, limita a sociedade», assim como as experiências e as vivências de cada indivíduo. Deste modo, o pluralismo e a diversidade perdem expressão e levam ao empobrecimento da sociedade, quer seja social, político, cultural, entre outras dimensões.

A identidade queer desafia a organização de género tradicional ao obrigar a afastar-nos dos conceitos pré-definidos sobre essa questão. Faz desvanecer o «autopoliciamento» dos nossos comportamentos associados ao género imposto à nascença. Nas palavras de Ana, «a identidade é um espaço para se navegar a identidade, para revisitá-la, para perceber o que é isto de identidade».

Assim, Ana Rita Santos reflete sobre o percurso da sociedade ocidental tal como conhecemos hoje e a sua íntima correlação com o processo de construção da nossa própria identidade individual: o que sentimos e como nos sentimos. No fundo, a perceção de cada indivíduo sobre o mundo e sobre a identidade é única: «existem muitas identidades porque existem muitas pessoas diferentes», explica. A revolta surge numa tentativa de transgredir este sistema binário de género, que se apresenta como opressor. É uma emancipação aos ideais incutidos nos indivíduos; é a procura da liberdade. «Esse sentimento de revolta é o gatilho para que exista mudança».

Carmo Gê Pereira

«Género é um instrumento de opressão social e é mais um dos níveis da máquina de tortura que é o mundo». Assim define Carmo Gê Pereira, conselheire sexual, educador ligado à sexualidade e gerente de uma sex shop online. Os pronomes com que se identifica são elu, eli, ele e ela, preferencialmente utilizados de maneira alternada.

Sofreu, desde cedo, de bullying de género devido ao seu comportamento que saía da norma. Na sua adolescência, começou a usar roupas mais sexualizadas e a adotar uma identidade que remetia à representação de «perra, de galdéria, de slut», que pega nos símbolos da feminilidade de forma «agressiva e estica-os até o ponto de choque».

Foi por volta dos 27 anos que descobriu os filósofes contemporâneos Judith Butler e Paul B. Preciado, estruturadores do pensamento queer. A partir desse momento, Carmo Gê Pereira apercebeu-se de que mais pessoas se sentiam da mesma forma: «Ah! É isto. Eu não sou uma pessoa completamente louca». Começou a alternar a roupa entre o que é considerado masculino e feminino e a experimentar novas maneiras de se comportar. Chegou, assim, a uma conclusão: «vou usar aquilo que me apetece usar». Para Carmo, o género passa a ser algo que não está. «É uma ausência de sentido de género». Atualmente, o conselheiro sexual sente que «já nada está dependente da expressão e isso é maravilhoso».

Carmo Gê Pereira reitera que a sociedade ocidental capitaliza e explora as identidades individuais, de forma retirar «a potência de revolta de todos os lugares que possamos ocupar». Deste modo, o sistema binário de género não tem em conta a expressão de cada pessoa, a perspetiva de cada indivíduo. E a maneira de quebrar essa categorização geral é através da revolta. Segundo Carmo, este sentimento «vem da resposta à violência em forçarem a encaixar-te onde não sentes que pertences, mas também da violência que vem só por seres a diferença».

Fábiu Bento

Fábiu de Sousa Bento está no quarto ano do curso de Pintura, na Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa. Apercebeu-se de que não se identificava ao género que lhe foi imposto à nascença quando tinha 20 anos.

Ao longo desse período, a representação desse papel sempre foi sentida como uma opressão que não lhe permitia vivenciar as experiências da maneira que elu pretendia: «teres a idea de que és de um género e apenas quereres agir nesse género pode-te limitar em bué coisas», confessa. Foi depois de questionar por bastante tempo a sua sexualidade que, através do estudo e da pesquisa, Fábiu chegou à conclusão de que o que sentia era, afinal, uma questão de género. Esta fuga ao sistema binário de género fá-lu sentir «identificado»: «estou a encontrar o que é que eu sou», explica. Sente-se confortável que a tratem por todos os pronomes.

A não-binariedade materializa-se na sua arte através do manuseamento de tecidos e cores habitualmente associados a um determinado género. É também através de espelhos e a ausência deles que continuadamente questiona a sua identidade. Desde que se reconheceu como não-binário, Fábiu tem a sensação de que a sua arte ficou «muito mais solta», facilitando a sua expressão individual.

A transgressão do género atribuído nos seus primeiros dias de vida foi um processo longo. Começou por «brincar com a ideia» de género, pintando as unhas e usando roupas habitualmente consideradas mais femininas. Ainda hoje, Fábiu esforça-se para trespassar estas noções incutidas nela: «não só sinto que tive que fazer essa revolução, como ainda a estou a fazer».

Crónica

Este trabalho jornalístico é para nós um ato de revolta. A escolha deste tema não foi ao acaso ou por conveniência: queríamos falar sobre pessoas trans, queríamos deixar pessoas trans falar.

Não estamos habituades a ver-nos nos media. Somos esquicides, apagades e descredibilizades. Das poucas vezes que somos assunto é para nos atacar, para nos chamar de aberração ou para reivindicar que «deixemos as crianças em paz». Quando era criança nunca me deixaram em paz. As pessoas viam algo que eu inocentemente não via. Nunca tentei ocupar um lugar que não o meu, mas esse mesmo lugar — como o de tantas crianças trans — foi-me negado, tornando a minha vida um lugar escuro. É urgente proteger as crianças trans. São demasiado comuns as semelhanças entre as nossas histórias.

Este trabalho surgiu da necessidade de não só haver representação de pessoas trans e literacia queer para combater a ignorância — o denominador comum das nossas histórias —, mas também de termos nós o poder de contar as nossas próprias histórias. Pela primeira vez na minha vida leio histórias de pessoas não-binárias contadas por uma pessoa não-binária. É assim que a pouco e pouco observamos o progresso que há 49 anos Abril se prometeu a cumprir e da Liberdade que prometeu estabelecer.

Ainda há muito que fazer, ainda há muitas histórias para contar.

As mulheres trans e as mulheres trans negras continuam a ser alvo de violência verbal, emocional e física incomparável. Assassinadas, desprotegidas e esquecidas. Não toleremos a intolerância. Ela mata e continuará a fazê-lo se nada mudar.

Revoltem-se!

Por Gabriel Miraldo