Dependência
Pelo Som da Dor
O que se segue a um relacionamento abusivo? A história de uma mulher que decidiu partilhar o seu passado de violência doméstica, num podcast de sua autoria, expondo o abuso e dependência emocional que viveu. Um testemunho sobre o processo de superação: a sensação de culpa e a coragem de quebrar o silêncio. O podcast […]
Beatriz Ferreira, Catarina Oliveira, Inês Gomes, Inês Rocha, Mariana Gomes
O que se segue a um relacionamento abusivo? A história de uma mulher que decidiu partilhar o seu passado de violência doméstica, num podcast de sua autoria, expondo o abuso e dependência emocional que viveu. Um testemunho sobre o processo de superação: a sensação de culpa e a coragem de quebrar o silêncio.
O podcast inicia-se com o relato da vítima acerca de uma primeira conversa que teve com o seu, agora, ex-companheiro. A música que acompanha esse momento transporta-nos para o amor que ali surgia. Ao longo dos episódios, o eco das palavras da narradora, assim como os sons de fundo, enfatizam o desenrolar da trama. Os sentimentos mudam e a sua voz intensifica-se. Imergimos naquela realidade. Gritos. Choro. Mensagens ignoradas. Chamadas não atendidas. Até que se ouvem passos apressados, como se fugisse.
Trata-se de um relato verídico narrado na primeira pessoa: é a história de uma mulher que encontrou uma forma de quebrar o silêncio e libertar-se do seu passado de violência doméstica. Transformou o sofrimento de outrora num espaço de sensibilização para a temática da violência doméstica, mostrando às vítimas, especialmente no primeiro confinamento da covid-19, que não estão sozinhas.
“No início tudo é muito bonito, tudo começa muito bem, com juras de amor eterno”
Conheceu o seu ex-companheiro através de amigos que tinham em comum. Na altura, tinha saído recentemente da relação de vinte anos que tivera com o pai do seu filho, e sentia-se emocionalmente debilitada, sem amor próprio. Ao conhecer este novo homem, que a fez sentir novamente confiante e amada, percebeu que poderia ter uma nova oportunidade no amor.
Apesar de ainda não se sentir preparada para assumir um novo relacionamento, ele pressionava-a para que tal acontecesse – algo que, agora, considera ser indício da relação abusiva que, mais tarde, experienciou. A sensação era de sufoco: não havia espaço para ser quem era, nem tempo para assimilar aquilo que sentia. Porém, não deixava de se questionar acerca do porquê das suas dúvidas: “este homem apareceu, está a salvar-me, está a ouvir-me, gosta tanto de mim, trata-me tão bem… Porque é que eu já estou a pensar que há alguma coisa estranha?” Este diálogo interior consumia-a lentamente, mas forçava-se a ignorar a sua intuição e a aceitar o seu relacionamento.
A relação evoluiu muito rapidamente. O seu ex-companheiro decidiu mudar-se para Lisboa, com o pretexto de que o fazia por motivos de trabalho, e passou a morar num prédio perto de sua casa. Esta inesperada decisão assustou-a, intensificando a pressão que sentia na relação que mantinham. Quando deu por si, já moravam juntos.
Nessa altura, começou a estranhar determinados comportamentos, como os exagerados ciúmes e a forma negativa como ele falava dos seus relacionamentos anteriores. Sempre tentou compreender a sua postura, desculpando-a. Mas há um dia em que deixa de conhecer o homem que tinha a seu lado: “deixou de ser a pessoa extraordinária, empática, fantástica, sorridente, que tratava o meu filho como um segundo pai. Passou a ser, de facto, o homem profundamente desequilibrado que é”.
De acordo com Catarina Reis Neves, psicóloga clínica e Técnica de Apoio à Vítima (TAV), a violência doméstica é um ciclo composto por três fases. Inicialmente, ocorre a fase de aumento de tensão, que se caracteriza por uma escalada nos episódios de agressão, seguindo-se o episódio agudo, denominado no ciclo por “ataque violento”, que pode resultar em maus-tratos físicos ou psicológicos. “Primeiro há uma discussão e as coisas são um pouco estranhas. Não estás à espera, nunca aconteceu antes. Até que um dia ele te levanta a mão”, conta a própria vítima.
Após o escalar de ataques, há uma tendência para a reaproximação dos indivíduos, que voltam a estar muito apaixonados, na chamada fase “lua de mel”. Este momento do ciclo ocorre devido ao facto de o agressor envolver a vítima num processo de sedução, prometendo-lhe uma mudança de comportamento. O ciclo de violência doméstica tende a perpetuar-se durante meses ou anos, ao longo dos quais se verifica um aumento da frequência dos episódios agudos, assim como a atenuação da fase lua de mel. “É quando o ciclo chega a este ponto que, normalmente, a vítima reconhece a violência doméstica”, esclarece a psicóloga.
O tipo de discurso comum em relações de violência doméstica tem por base o fenómeno entrapment. Catarina Reis Neves descreve este conceito como um “encurralar da vítima, que faz com que fique dependente [do agressor]”. O discurso dos agressores está assente na ideia machista de que a mulher deve obediência ao homem, explica Ricardo Loureiro, técnico superior da Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género (CIG) no Núcleo de Violência Doméstica/Violência de Género. Esta mentalidade está associada aos papéis sociais atribuídos à nascença, que colocam homens e mulheres em “determinadas caixinhas”. Nesse sentido, o técnico da CIG refere que também os brinquedos, por serem uma forma de socialização, estimulam o desenvolvimento de determinados comportamentos. Por exemplo, os brinquedos considerados de menino estão muitas vezes associados à ideia de força e agressividade, o que contribui para a interiorização desses traços desde a infância.
“No dia em que eu não consegui protegê-lo… Foi o princípio do fim”
Durante meses, foi alvo de constantes episódios violentos. Quando o sofrimento que sentia afetou o seu filho, decidiu colocar um ponto final no relacionamento. Ao conseguir afastar-se da relação, e depois de ter apresentado queixa, iniciou o seu processo de superação, no qual a família e os amigos foram determinantes.
Inicialmente, acreditava estar livre, mas foi nessa altura que começaram as perseguições: contactos de perfis falsos nas redes sociais, bilhetes deixados na caixa de correio e no carro, mensagens e e-mails diários. “Era um filme. Um filme em que tu te apercebes que estás a ser perseguida. Quando estás na rua e sabes que, às tantas, está alguém atrás de ti, que tu não estás a ver, mas que se faz sentir”.
O medo deixou de existir um ano depois de ele ter dito que a matava. A sua irmã foi um dos seus grandes pilares para desconstruir o sentimento de culpa e vergonha. A sensação de culpa na vítima deve-se ao fenómeno de victim blaming, como explica Daniel Cotrim, psicólogo responsável pela área da violência de género e violência doméstica na Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV): “as vítimas sentem-se altamente culpadas, e quem é que as culpa também? Nós todos”.
Segundo Catarina Reis Neves, a vítima não tem responsabilidade dos abusos. Por outro lado, a autora do podcast diz que existe responsabilidade na medida em que não teve as “ferramentas necessárias” para se proteger de uma situação de violência doméstica. “Eu estou muito mais consciente, portanto dificilmente permitirei que outro homem semelhante entre na minha vida”, esclarece.
“Atravessas o deserto, caminhas sempre em frente, sem nunca desistir de ti”
Numa altura em que se considerava perdida, procurou apoio profissional junto da APAV e da Corações com Coroa, associações que a ajudaram num momento inicial. Posteriormente, fez também terapia de forma a exteriorizar as emoções que sentiu durante o relacionamento. Conta que foi um processo longo e muito difícil, pois, embora as sessões fossem um momento libertador, no final, saía “arrasada”, porque recordava aquilo que mais a magoava.
Em casos de violência doméstica, paralelamente ao acompanhamento da vítima, o trabalho junto dos agressores é também importante para que não haja reincidência de abusos. Esta intervenção, nas palavras de Ricardo Loureiro, passa por promover a desconstrução sexista da masculinidade, assim como formas de feminilidade empoderadas.
A escrita foi outro mecanismo de superação. Escrevia acerca das suas emoções, registando as palavras que o seu ex-companheiro lhe dirigiu, numa tentativa de atenuar a dor que sentia: “tens este nó na garganta e libertas-te dele”. Quando conseguiu expor tudo aquilo que sentia através da escrita, surgiu a ideia de criar um podcast.
Catarina Reis Neves destaca a importância de a comunidade estar alerta à existência de relações abusivas, em especial por ser difícil detetar situações de dependência emocional nas relações. A própria autora do podcast conta que o agressor também recorre ao parceiro com o intuito de preencher um vazio emocional, podendo existir codependência: “os agressores e as vítimas têm um traço em comum que é a falta de autoestima, a falta de amor próprio, a insegurança e a sensibilidade extrema”.
“Escrevi-as, o público leu-as e as palavras deixaram de ser minhas”
Inicialmente, não se sentia preparada para se assumir enquanto protagonista da história que contava. No entanto, o facto de a violência doméstica ser o crime mais cometido em Portugal motivou-a a partilhar com a Antena 1 os dez episódios do formato podcast que criou a partir daquilo que foi escrevendo sobre o seu relacionamento. Após ter sido aprovado, foi publicado sob o título A mim, nunca. Recentemente, o projeto foi adaptado a uma minissérie com o mesmo nome, que foi disponibilizada na plataforma RTP Play a 17 de janeiro de 2022.
Cartaz promocional da série A Mim, Nunca | Fonte: RTPPlay
Durante a pandemia, decidiu fazer uma campanha no seu Instagram chamada Ele dizia-me. Numa tentativa de desmistificar aquilo que é considerado amor, partilhou várias frases que lhe foram ditas pelo ex-companheiro ao longo do relacionamento. A repercussão da campanha incentivou-a a admitir a situação de violência doméstica que viveu: “quando vives uma realidade destas, há um momento em que tu tens de sair do silêncio, por muito que custe”.
Esta é a história de Joana Dias, repórter da RTP. Não conseguiu ficar indiferente à realidade da violência doméstica e, também, por fazer serviço público, decidiu dar voz a esta problemática. Em Portugal, calcula-se que cerca de treze mil pessoas vivem uma situação de violência doméstica, segundo o Relatório Anual da APAV de 2020. Joana conta que, no seguimento das suas iniciativas, recebeu várias mensagens de partilha de casos de violência doméstica e de agradecimento – algo de que não estava à espera.
“A violência doméstica é o crime mais democrático de todos: atinge homens, mulheres, crianças, pessoas mais velhas, de todas as orientações sexuais, geografias, e grupos socioeconómicos”, explica Daniel Cotrim. Ainda assim, de acordo com o Relatório Anual da APAV de 2020, esta problemática verifica-se, geralmente, em contextos de intimidade, entre companheiros ou ex-companheiros – correspondendo a uma percentagem superior a 44% dos casos identificados em Portugal.
Apesar de não ser possível detetar a origem das situações de violência doméstica, esta associa-se intrinsecamente aos estereótipos de género, que, por sua vez, se relacionam com as relações de poder desiguais, como refere Ricardo Loureiro. Acontece que, ao aprendermos a ser homens e a ser mulheres, reproduzimos o próprio estereótipo, sem que alguma vez tenhamos refletido acerca disso.
Quando as desculpas do seu ex-companheiro se tornaram repetitivas, deixou de acreditar que nas suas palavras. Questionada acerca da possibilidade de perdoar o agressor, Joana mostra-se pensativa. Após alguns momentos em silêncio, explica que, atualmente, não pensa no ex-companheiro, exceto quando conta a sua história, acrescentando: “o que é isso de perdoar? Perdoo? Ele é-me indiferente”.
O relacionamento abusivo que viveu fê-la adquirir um novo autoconhecimento: “há momentos em que dou por mim a agradecer”, confessa. No último episódio do podcast, ao som de To Build A Home, Joana despede-se interiormente daquilo que viveu. Decidiu que era tempo de se valorizar, de se amar, de dizer A mim, nunca (mais).